Muito se tem dito no âmbito da política sobre ciência. “É preciso seguir a ciência”, disseram muitos (será?). “Ciência, ciência e ciência”, disseram outros, sem saber direito do que estavam falando. Mas do que estamos falando? Afinal, o que é ciência?
George Edward Pelham Box, (1919–2013) foi um estatístico britânico, uma das grandes mentes estatísticas do século XX.
Karl Raimund Popper (1902-1994) foi filosofo e professor austro-britânico.
Em 1976, GEP Box, publicou um artigo Ciência e Estatística, em que conceitua ciência:
“A ciência é um meio pelo qual a aprendizagem é alcançada, não por mera especulação teórica, por um lado, nem pela acumulação não direcionada de fatos práticos, por outro, mas sim por uma iteração motivada entre teoria e prática, como ilustrado na Figura A(1).”
Figura A. O processo de avanço do conhecimento; A(1) uma iteração entre teoria e prática; A(2) um laço de realimentação,

Autor: G.E.P. Box. Science and Statistics.
Ou, de outra forma, existem diversas formas de aprendizado e de aquisição de conhecimento (o produto final do processo de aprendizado é o conhecimento adquirido). Dentre elas (insisto, existem várias outras formas válidas), está o processo científico, ou simplesmente, a ciência [em sentido estrito].
Muitas pessoas chamam o que aqui se chama de ciência [ou ciência em sentido estrito] de ciência natural ou ciências empíricas. E o que aqui se chama de conhecimento, chamam de ciência [simplesmente]. Não adotarei essa nomenclatura por uma razão simples, a sua adoção está relacionado à tentativa de dar a outros conhecimentos, que não o científico [em sentido estrito], uma autoridade que não necessariamente possuem.
O que caracteriza o processo científico é a formulação de hipóteses sobre fenômenos que são passíveis de serem testáveis.
Hipóteses, modelos, conjeturas, teorias ou ideais são o produto do processo científico. Ciência sempre demanda uma hipótese (ou um modelo, ou uma conjetura, ou uma teoria, ou uma ideia) explicativa de um fenômeno.
Fenômeno é que o se observa na natureza, podendo ser um estado ou uma transição de estados. Ciência sempre demanda uma hipótese (ou um modelo, etc.) sobre um fenômeno.
Assim, um conhecimento (uma teoria) que não visa explicar um fenômeno não é uma teoria científica.
Uma mera coleção ou descrição de fatos não é ciência (logo, história, conhecimento fundamental para a compreensão da condição humana, não é ciência).
Teoria musical é um conhecimento da máxima relevância humana, mas não é ciência. No caso de algum interessado em compor fugas, sempre pode se socorrer à “Arte da Fuga”, de Johann Sebastian Bach. Mas, compor música não é busca de conhecimento de um fenômeno.
O estudo das normas jurídicas de um país não é ciência.
Mas, é possível formular uma teoria científica de como revoluções ocorrem e usar os fatos históricos para embasar tal teoria (que pode, por exemplo, prever as condições para a ocorrência de uma futura revolução). Ou formular uma teoria científica sobre gostos musicais ou sobre como a jurisprudência se forma em face de certas normas.
O conhecimento das engenharias é extremamente rico e importante. Mas engenharia também não é um processo de produção de conhecimento. É um processo de construção de utilidades ou de aprimoramento de processos de construção de utilidades em benefício das pessoas.
Outrossim, para construir tais utilidades, os engenheiros muitas vezes se usam de conhecimento científico (neste caso se afirma que a engenharia utilizada é uma tecnologia), muitas vezes não (e neste caso se afirma que engenharia utilizada é uma técnica). É que, o conhecimento de engenharia não se confunde com ciência. Reflita sobre a construção de pirâmides pelos egípcios, tempos gregos, aquedutos romanos e belíssimas igrejas góticas muito antes de existir qualquer conhecimento que possa ser chamado de ciência [em sentido estrito] sobre tais assuntos.
Como resultado desse conceito de ciência, toda hipótese científica precisa ser falseável, um conceito caro a K. R. Popper. Isto é, qualquer hipótese (etc.) precisa ser passível de ser contrastada com a realidade (com fenômenos) e pode ser verificado se a hipótese explica razoavelmente (dentro de uma precisão razoável) o fenômeno, ou não.
| Einstein and Eddington Einstein e Eddington é um filme britânico que conta a história de como Sir Arthur Stanley Eddington (1882-1944) delineou um experimento para testar a teoria geral da relatividade de Albert Einstein (1879-1955), proposta em 1915. Em Eddington e o astrônomo Frank Watson Dyson organizaram duas expedições para observar o eclipse solar de 1919, para fazer o primeiro teste de falseamento da teoria de Einstein: a medição da deflexão (ou não) da luz pelo campo gravitacional do Sol. Vale a pena assistir. |
Se uma hipótese não pode ser falseada (contrastada com a realidade) essa hipótese não é científica.
O processo de faseamento da teoria é feito através daquilo que se chama de delineamento experimental (ou desenho de experimento).
Figura B. Análise e coleta de dados no processo de investigação científica.

Autor: G.E.P. Box. Science and Statistics.
Observação: * o delineamento experimental é mostrado aqui como uma janela móvel olhando para o verdadeiro estado da natureza. seu posicionamento a cada estágio é motivado pelas crenças correntes, esperanças e medos.
Como já dito, a ciência produz conhecimento sobre fenômenos. Por isso, a ciência tem muito a dizer sobre como fazer para atingirmos os fins que desejamos. Estamos falando aqui de fenômenos e de teorias sobre fenômenos (estados – fim desejado – e transição de estados – como fazer para sair de onde estamos para onde desejamos estar)
Contudo, a ciência já não tem tanto a dizer sobre quais fins devemos desejar (porque devo desejar este fim e não outro). Os quais os limites que devemos respeitar e que não estamos dispostos a violar para atingirmos nossos fins (nossos valores). Essa são escolhas humanas em que a religião, a moral e a filosofia (conhecimentos não científicos) podem ser muito mais relevantes.
Textos selecionados
Karl Popper. A lógica da descoberta científica. Londres: 1959.
Um cientista, seja teórico ou experimental, apresenta afirmações, ou sistemas de afirmações, e as testa passo a passo. No campo das ciências empíricas, mais particularmente, ele constrói hipóteses, ou sistemas de teorias, e as testa em relação à experiência, por meio da observação e do experimento.
(…)
De acordo com a visão que será apresentada aqui, o método de testar teorias criticamente e selecioná-las de acordo com os resultados dos testes sempre procede da seguinte forma: a partir de uma nova ideia, apresentada provisoriamente e ainda não justificada de forma alguma – uma antecipação, uma hipótese, um sistema teórico ou o que quer que seja –, conclusões são tiradas por meio de dedução lógica. Essas conclusões são então comparadas entre si e com outras afirmações relevantes, a fim de descobrir quais relações lógicas (como equivalência, derivabilidade, compatibilidade ou incompatibilidade) existem entre elas.
(…)
Mas certamente admitirei um sistema como empírico ou científico somente se ele for passível de ser testado pela experiência. Essas considerações sugerem que não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema deve ser tomada como critério de demarcação. Em outras palavras: não exigirei de um sistema científico que ele seja capaz de ser destacado, de uma vez por todas, em um sentido positivo; mas exigirei que sua forma lógica seja tal que possa ser destacado, por meio de testes empíricos, em um sentido negativo: deve ser possível que um sistema científico empírico seja refutado pela experiência.
(Assim, a afirmação “Choverá ou não choverá aqui amanhã” não será considerada empírica, simplesmente porque não pode ser refutada; ao passo que a afirmação “Choverá aqui amanhã” será considerada empírica.)
(…)
Dois exemplos simples de regras metodológicas podem ser dados. Eles serão suficientes para mostrar que dificilmente seria adequado colocar uma investigação sobre o método no mesmo nível de uma investigação puramente lógica.
(1) O jogo da ciência é, em princípio, sem fim. Aquele que decide um dia que as afirmações científicas não exigem mais testes e que podem ser consideradas como finalmente verificadas, retira-se do jogo.
(2) Uma vez que uma hipótese tenha sido proposta e testada, e tenha provado seu valor, ela não pode ser abandonada sem uma “boa razão”. Uma “boa razão” pode ser, por exemplo: a substituição da hipótese por outra que seja mais bem testável; ou a falsificação de uma das consequências da hipótese. (O conceito “mais bem testável” será posteriormente analisado mais detalhadamente.)
Esses dois exemplos mostram como são as regras metodológicas. Claramente, elas são muito diferentes das regras geralmente chamadas de “lógicas”. Embora a lógica possa talvez estabelecer critérios para decidir se uma afirmação é testável, ela certamente não se preocupa com a questão de se alguém se esforça para testá-la.
(…)
Teorias científicas são afirmações universais. Como todas as representações linguísticas, são sistemas de signos ou símbolos. Portanto, não considero útil expressar a diferença entre teorias universais e afirmações singulares dizendo que estas últimas são “concretas”, enquanto teorias são meras fórmulas simbólicas ou esquemas simbólicos; pois exatamente o mesmo pode ser dito até mesmo das afirmações mais “concretas”.
Teorias são redes lançadas para capturar o que chamamos de “mundo”: para racionalizá-lo, explicá-lo e dominá-lo. Nós nos esforçamos para tornar a malha cada vez mais fina.
(…)
Dar uma explicação causal de um evento significa deduzir uma afirmação que o descreve, usando como premissas da dedução uma ou mais leis universais, juntamente com certas afirmações singulares, as condições iniciais. Por exemplo, podemos dizer que demos uma explicação causal para a ruptura de um determinado pedaço de fio se descobrimos que o fio tem uma resistência à tração de 1 libra e que um peso de 2 libras foi colocado sobre ele. Se analisarmos essa explicação causal, encontraremos várias partes constituintes. Por um lado, há a hipótese: “Sempre que um fio é carregado com um peso que excede aquele que caracteriza a resistência à tração do fio, ele se romperá”; uma afirmação que tem o caráter de uma lei universal da natureza. Por outro lado, temos afirmações singulares (neste caso, duas) que se aplicam apenas ao evento específico em questão: “O peso característico deste fio é 1 libra” e “O peso colocado sobre este fio foi de 2 libras”.
Temos, portanto, dois tipos diferentes de enunciados, ambos ingredientes necessários de uma explicação causal completa. São eles: (1) enunciados universais, ou seja, hipóteses sobre o caráter das leis naturais, e (2) enunciados singulares, que se aplicam ao evento específico em questão e que chamarei de “condições iniciais”. É a partir de enunciados universais em conjunto com condições iniciais que deduzimos o enunciado singular: “Este fio se romperá”. Chamamos essa afirmação de predição específica ou singular.
As condições iniciais descrevem o que geralmente é chamado de “causa” do evento em questão. (O fato de uma carga de 2 libras ter sido colocada em um fio com uma resistência à tração de 1 libra foi a “causa” de sua ruptura.) E a predição descreve o que geralmente é chamado de “efeito”. Evitarei ambos os termos. Em física, o uso da expressão “explicação causal” é restrito, via de regra, ao caso especial em que as leis universais têm a forma de leis de “ação por contato”; ou, mais precisamente, de ação a uma distância nula, expressa por equações diferenciais. Esta restrição não será assumida aqui. Além disso, não farei nenhuma afirmação geral quanto à aplicabilidade universal deste método dedutivo de explicação teórica. Portanto, não afirmarei nenhum “princípio de causalidade” (ou “princípio de causalidade universal”). O “princípio de causalidade” é a afirmação de que qualquer evento pode ser explicado causalmente — que pode ser previsto dedutivamente. De acordo com a maneira como se interpreta a palavra “pode” nesta afirmação, ela será tautológica (analítica) ou então uma afirmação sobre a realidade (sintética). Pois se “pode” significa que é sempre logicamente possível construir uma explicação causal, então a afirmação é tautológica, visto que para qualquer predição, seja ela qual for, podemos sempre encontrar afirmações universais e condições iniciais das quais a predição é derivável. (Se essas afirmações universais foram testadas e corroboradas em outros casos é, obviamente, uma questão bem diferente.) Se, no entanto, “pode” significa que o mundo é governado por leis estritas, que é construído de tal forma que cada evento específico é uma instância de uma regularidade ou lei universal, então a afirmação é reconhecidamente sintética. Mas, neste caso, não é falseável, como se verá mais adiante, na seção 78. Portanto, não adotarei nem rejeitarei o “princípio da causalidade”; contentar-me-ei simplesmente em excluí-lo, como “metafísico”, da esfera da ciência.
(…)
Questões para reflexão:
- O que dizer de um político que, para fins de obter a aprovação de uma medida legislativa que restringe direitos dos cidadãos, argumenta que devemos seguir a ciência?

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