III. Samuel (1070 a 1010 a.C.) e o abuso de poder pelos governantes

Introdução: Samuel, o Profeta e Juiz de Israel

Samuel é uma figura central no Antigo Testamento, um profeta, juiz e sacerdote que liderou Israel em um período de transição espiritual e política (aproximadamente 1070-1010 a.C.). Dedicado a Deus desde a infância por sua mãe Ana (1 Samuel 1:20-28), Samuel cresceu no templo sob a tutela de Eli e foi chamado por Deus ainda jovem (1 Samuel 3:1-10). Como juiz, ele julgava com integridade, guiava o povo espiritualmente e promovia a obediência à lei divina. No entanto, em sua velhice, o povo de Israel exigiu um rei para governá-los, rejeitando a liderança teocrática mediada por Samuel (1 Samuel 8:4-5). Este capítulo examina o alerta de Samuel em 1 Samuel 8:10-22 sobre os perigos do abuso de poder pelos governantes.

Figura 4. Samuel unge David como rei. Pintura na Sinagoga de Dura Europo (século III)

Autor: retrabalhado por Marsyas, domínio público, via Wikimedia Commons

Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5107843

O Pedido por um Rei e o Alerta Divino

Em 1 Samuel 8:10-22, Samuel, a mando de Deus, adverte os israelitas sobre as consequências de terem um rei humano, após eles insistirem em ser governados “como as outras nações” (1 Samuel 8:5). O povo via a monarquia como uma solução para a instabilidade política e a corrupção dos filhos de Samuel, que aceitavam subornos e pervertiam a justiça (1 Samuel 8:3). Contudo, Deus interpreta essa demanda como uma rejeição de Sua soberania (1 Samuel 8:7).

Samuel descreve vividamente o custo da monarquia: um rei tomaria seus filhos para o exército, suas filhas para servi-lo, suas terras e colheitas para seus oficiais, e até seus servos e bens para seu uso pessoal (1 Samuel 8:11-17). Ele alerta: “Sereis seus servos” (1 Samuel 8:17), e, quando clamarem a Deus por alívio, “o Senhor não vos responderá naquele dia” (1 Samuel 8:18). Apesar disso, o povo persiste, dizendo: “Haverá um rei sobre nós” (1 Samuel 8:19). Esse texto revela a tendência humana de buscar segurança em líderes terrenos, ignorando os riscos de centralização do poder e os abusos que podem surgir.

De outro lado, há o alerta divino de que os governos são necessários quando o povo rejeita a Deus como líder (e não se confunda aqui Deus com suas igrejas). Ou, de outra forma, um povo virtuoso não precisa de governo, o governo é uma demanda de um povo que não deseja obedecer a Deus (1 Samuel 8:7).

Pandemia, pedidos de mais estado, abusos de poder.
Durante a pandemia de Covid muitas pessoas demandaram ação do estado para protegê-las da pandemia (veremos em capítulos mais adiante que pessoas com medo têm sua capacidade de análise racional reduzida e pedem mais estado).
Como resposta, o governo dos EUA implementou amplos programas de auxílio econômico para mitigar as consequências econômicas. A Lei de Ajuda, Alívio e Segurança Econômica do Coronavírus (CARES) e medidas subsequentes, incluindo o Plano de Resgate Americano, desembolsaram mais de US$ 4,2 trilhões para apoiar empresas, indivíduos e governos estaduais.
Pesquisas sugerem que a escala de fraude e desperdício foi substancial, com as seguintes estimativas: Uma análise da Associated Press constatou que fraudadores potencialmente roubaram mais de US$ 280 bilhões em verbas para auxílio à COVID-19, com outros US$ 123 bilhões desperdiçados ou mal gastos, totalizando mais de US$ 400 bilhões, o que representa aproximadamente 10% dos US$ 4,2 trilhões desembolsados.
O Government Accountability Office (órgão de controle externo do governo americano) relatou que centenas de bilhões de dólares provavelmente foram perdidos em fraudes, com estimativas variando de dezenas de bilhões a potencialmente mais de US$ 100 bilhões, conforme observado por Michael Horowitz, destacando a dificuldade de mensuração precisa devido à natureza enganosa da fraude.
Leituras complementares:
https://apnews.com/article/pandemic-fraud-waste-billions-small-business-labor-fb1d9a9eb24857efbe4611344311ae78
https://www.gao.gov/products/gao-25-107746

Princípios Bíblicos contra o Abuso de Poder

Além de 1 Samuel 8, outros textos bíblicos reforçam a necessidade de líderes justos e responsáveis. Deuteronômio 17:14-20, que regula a monarquia, instrui que o rei deve ser escolhido por Deus, evitar a acumulação de riquezas e poder militar, e estudar a lei divina para governar com humildade. Esse texto contrasta com a descrição de Samuel (1 Samuel 8), destacando que o abuso de poder surge quando os líderes ignoram os limites estabelecidos por Deus.

O profeta Jeremias também condena governantes injustos, dizendo: “Ai dos pastores que destroem e dispersam as ovelhas do meu pasto!” (Jeremias 23:1). Ele exalta líderes que “executam o juízo e a justiça na terra” (Jeremias 23:5). Esses princípios mostram que a liderança deve ser um serviço ao povo, não uma oportunidade para exploração.

Conclusão: Uma Lição Atemporal

O alerta de Samuel em 1 Samuel 8:10-22 permanece relevante, lembrando-nos dos perigos do abuso de poder. Líderes que priorizam interesses pessoais ou acumulam autoridade sem accountability tendem a oprimir, como Samuel advertiu. A vida de Samuel nos desafia a buscar líderes que reflitam a justiça divina (reis que vieram para servir) e a resistir à tentação de confiar cegamente em sistemas humanos.

Trecho selecionado:

Bíblia – Almeida Revista e Atualizada (ARA).

I Samuel, 8

Os israelitas pedem um rei

¹ Tendo Samuel envelhecido, constituiu seus filhos por juízes sobre Israel.

² O primogênito chamava-se Joel, e o segundo, Abias; e foram juízes em Berseba.

³ Porém seus filhos não andaram pelos caminhos dele; antes, se inclinaram à avareza, e aceitaram subornos, e perverteram o direito.

Então, os anciãos todos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá,

e lhe disseram: Vê, já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações.

Porém esta palavra não agradou a Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei, para que nos governe. Então, Samuel orou ao Senhor.

Disse o Senhor a Samuel: Atende à voz do povo em tudo quanto te diz, pois não te rejeitou a ti, mas a mim, para eu não reinar sobre ele.

Segundo todas as obras que fez desde o dia em que o tirei do Egito até hoje, pois a mim me deixou, e a outros deuses serviu, assim também o faz a ti.

Agora, pois, atende à sua voz, porém adverte-o solenemente e explica-lhe qual será o direito do rei que houver de reinar sobre ele.

¹ Referiu Samuel todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedia um rei,

¹¹ e disse: Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que corram adiante deles;

¹² e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinquenta; outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros.

¹³ Tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras.

¹ Tomará o melhor das vossas lavouras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais e o dará aos seus servidores.

¹ As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores.

¹ Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho.

¹ Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos.

¹ Então, naquele dia, clamareis por causa do vosso rei que houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia.

¹ Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós.

² Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós e fazer as nossas guerras.

²¹ Ouvindo, pois, Samuel todas as palavras do povo, as repetiu perante o Senhor.

²² Então, o Senhor disse a Samuel: Atende à sua voz e estabelece-lhe um rei. Samuel disse aos filhos de Israel: Volte cada um para sua cidade.

Perguntas para reflexão

1. Podemos confiar nos governantes? Se sim, em quais circunstâncias? Se não, o que fazer?

2. É possível viver em liberdade (entendida a possibilidade de viver sob um governo que pouco tributa, pouco regula e pouco interfere na vida das pessoas) sem possuir valores morais? Ou, em que medida liberdade e responsabilidade do povo caminham juntas?

3. Como fazer com que os governantes observem os limites estabelecidos por Deus?

4. Como a resistência de Samuel à demanda popular por um rei ilustra a tensão contemporânea entre demandas populistas por “homens fortes” e a necessidade de preservar limitações constitucionais ao poder executivo?

5. Se Samuel advertiu que os reis “tomarão seus filhos… suas filhas… seus campos”, como essas preocupações se manifestam hoje em debates sobre expansão do estado e limitações aos direitos de propriedade?

6. Discuta o princípio bíblico de Deuteronômio 17 de que os reis devem evitar acumular riquezas e estudar a lei divina. Como isso pode informar os esforços atuais para impor limites de mandato ou requisitos de divulgação financeira a líderes políticos?

7. De que maneiras a narrativa da transição de juízes para a monarquia alerta contra a erosão das liberdades individuais sob o poder centralizado, e como isso se relaciona com as discussões em andamento sobre autoridade federal versus estadual em sistemas federados como a UE ou os EUA?

8. O texto sugere que um povo virtuoso não precisa de governo (ou, pelo menos, precisa de menos governo), surgindo da rejeição da liderança divina; como essa ideia pode desafiar as visões libertárias modernas sobre governo mínimo, especialmente em contextos de decadência moral ou autoritarismo crescente?

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