V. Sófocles (497 ou 496 a 406 ou 405 a.C.) e sua Antígona, os direitos naturais em contraposição ao direito positivo.

Introdução: Sófocles e sua Contribuição à Literatura e ao Pensamento Ocidental

Sófocles, nascido por volta de 497/496 a.C. em Colono, perto de Atenas, foi um dos mais renomados dramaturgos da Grécia Antiga. Como um dos três grandes trágicos atenienses, ao lado de Ésquilo e Eurípides, Sófocles desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do teatro e da literatura ocidental. Sua vida e obra refletem o período clássico de Atenas, uma era de grande transformação cultural e política. Filho de uma família abastada, ele recebeu uma educação refinada e participou ativamente da vida pública, servindo como tesoureiro e general, além de ser sacerdote do deus da cura, Asclepio.

Sófocles é creditado por inovações teatrais significativas, como a introdução de um terceiro ator nos espetáculos, o que permitiu maior complexidade nas narrativas e no desenvolvimento de personagens. Ele também aumentou o número de membros do coro de doze para quinze e utilizou cenários pintados, enriquecendo a experiência visual das peças. Escreveu mais de 120 tragédias, mas apenas sete sobreviveram completas: Ájax, Antígona, Mulheres de Tráquia, Édipo Rei, Eletra, Filoctetes e Édipo em Colono. Suas obras são conhecidas por explorar dilemas morais profundos, como o conflito entre o dever humano e as leis divinas, temas que permanecem relevantes até hoje. Entre suas peças mais famosas, destacam-se as chamadas “peças tebanas”, que incluem Antígona e Édipo Rei. Essas tragédias abordam questões universais, como o destino, a moralidade e a tensão entre as leis humanas e as leis divinas, temas centrais para a discussão sobre direitos naturais versus direito positivo. Sófocles não apenas dominou o teatro de seu tempo, vencendo 24 de 30 competições dramáticas em que participou, mas também deixou um legado duradouro, influenciando profundamente a filosofia, a ética e o pensamento jurídico ao longo dos séculos.

Contexto Histórico e Literário

Antígona, escrita por Sófocles por volta de 441 a.C., é uma tragédia grega que explora a tensão entre o dever moral (obediência a leis divinas e eternas) e a obediência às leis do estado (criadas pelos homens e impostas pelo Estado). A peça centra-se em Antígona, que desafia o decreto de Creonte, rei de Tebas, proibindo o enterro de seu irmão Polinices, rotulado como traidor.

O Conflito: Direito Natural vs. Direito Positivo

O direito natural, para Antígona, refere-se a leis universais derivadas da natureza humana ou da divindade, enquanto o direito positivo, defendido por positivistas, é composto por leis criadas e aplicadas por autoridades humanas, independentemente de sua moralidade. Em Antígona, esse conflito é dramatizado pela decisão de Antígona de enterrar Polinices, seu irmão, contrariando o édito de Creonte, Rei de Tebas.

Antígona expressa sua visão em um discurso famoso:

“Eu não pensei que seus decretos fossem tão poderosos que você, um homem mortal, pudesse ultrapassar os costumes não escritos e imutáveis dos deuses. Pois estes estão vivos, não apenas hoje ou ontem, mas para sempre, e ninguém sabe quando surgiram.”

Essa passagem, encontrada nas linhas 510-529, mostra Antígona apelando a leis eternas e divinas, que considera superiores às leis humanas de Creonte.

Por outro lado, Creonte representa o direito positivo, defendendo a autoridade do estado. Ele argumenta que suas leis são necessárias para manter a ordem:

“O homem que pensa mais em qualquer coisa do que em seu país, eu o coloco em nenhum lugar. Pois eu, Zeus que vê todas as coisas sempre é minha testemunha, eu não ficaria calado se visse a ruína, e não a segurança, no caminho para meus cidadãos; nem eu jamais consideraria um inimigo de meu país como um amigo, porque sei disso, que nosso país é o navio que nos leva em segurança, e apenas enquanto ele prospera em nossas viagens podemos fazer amigos.”

Essa visão enfatiza a obediência às leis estatais, mesmo que sejam moralmente questionáveis.

Análise do Diálogo Crucial

O diálogo entre Antígona e Creonte, quando ele a confronta sobre sua desobediência, é central para entender o conflito. Creonte pergunta:

“E ainda assim ousaste quebrar essas mesmas leis?”

Antígona responde:

“Sim. Zeus não me anunciou essas leis. E a Justiça, vivendo com os deuses abaixo, não enviou tais leis para os homens. Eu não considerei nada do que proclamaste forte o suficiente para permitir que um mortal anulasse os deuses e suas leis não escritas e imutáveis. Elas não são apenas para hoje ou ontem, mas existem para sempre, e ninguém sabe onde surgiram pela primeira vez. Portanto, eu não pretendia deixar que o medo de qualquer vontade humana me levasse à punição entre os deuses. Eu sei muito bem que vou morrer — como não poderia? — não faz diferença o que decretares. E se eu tiver que morrer antes do meu tempo, bem, considero isso um ganho. Quando alguém tem que viver como eu, cercado por tantas coisas más, como pode deixar de encontrar um benefício na morte? E assim, para mim, encontrar esse destino não trará nenhuma dor. Mas se eu tivesse permitido que o filho morto da minha mãe simplesmente jazesse ali, um cadáver insepulto, então eu sentiria angústia. O que está acontecendo aqui não me machuca nem um pouco. Se você acha que o que estou fazendo agora é estúpido, talvez eu esteja sendo acusada de tolice por alguém que é tolo.”

Esse trecho ilustra claramente a defesa de Antígona dos direitos naturais, colocando seu dever moral acima das leis humanas.

A expressão “nem a Justiça, que vive com os deuses abaixo” refere-se à deusa Dike, a personificação da Justiça na mitologia grega, associada à ordem divina e às leis eternas. No contexto da fala de Antígona, essa Justiça está do lado dos deuses ctônicos (os deuses e divindades do mundo subterrâneo), incluindo Hades, o deus do submundo. Isto é, a Justiça está do lado do dever de enterrar os mortos. Na cultura grega, o enterro dos mortos era um dever sagrado, necessário para garantir a paz da alma do falecido e evitar a ira dos deuses do submundo.

Figura 6.  Antigona condenada à morte por Creonte (1845).

Autor:Giuseppe Diotti

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Antigone_condannata_a_morte_da_Creonte.jpg

Creonte, por sua vez, insiste na autoridade do estado, criticando a insolência de Antígona:

“Essa garota aqui já era muito insolente ao contrariar as leis que havíamos proclamado. Aqui ela novamente demonstra seu orgulhoso desprezo —tendo cometido o ato, agora se gaba dele. Ela ri do que fez. Bem, neste caso, se ela conseguir o que quer e ficar impune, então ela é a pessoa certa aqui, não eu. Não. Ela pode ser filha da minha irmã, mais próxima de mim pelo sangue do que qualquer pessoa da minha casa que adore Zeus Herkeios em minha casa, mas ela não escapará do meu castigo mais severo (…)”

Esse contraste destaca o embate entre a moralidade individual (direito natural) e a arrogância da autoridade estatal (direito positivo) que objetiva se impor mesmo que violando preceitos de Justiça.

Implicações Filosóficas e Legais

O conflito em Antígona levanta questões fundamentais sobre a legitimidade das leis. Antígona representa o direito natural onde leis injustas não são verdadeiras leis.  Sua resposta a Creonte reflete a visão de que leis divinas e naturais precedem leis humanas, visão de mundo que será incorporada pelos liberais clássicos e pelos conservadores moderados americanos.

Por outro lado, Creonte personifica o positivismo, onde a lei é o comando do soberano, respaldado por sanções, e vê a necessidade de ordem, observância a hierarquia, como fundamental à governança. Por isso, Creonte condena Antígona à morte por não seguir sua ordem, acreditando que a liberalidade perturbaria Tebas, alinhando-se às mentalidade estatistas segundo às quais a ordem estatal precede a Justiça (para alguns autores estatistas, como Hans Kelsen, a ordem estatal é sinônimo de Justiça) e a  validade da lei é separada de seu conteúdo moral.

Relevância Moderna

Os temas de Antígona permanecem relevantes, especialmente em momentos de crises e violações de direitos pelo estado, usualmente legitimadas pelo próprio direito estatal.

Tabela: Comparação entre Direito Natural e Direito Positivo em Antígona

AspectoDireito Natural (Antígona)Direito Positivo (Creonte)
FonteLeis divinas, eternas, moraisLeis humanas, criadas pelo estado, impostas
Exemplo na PeçaEnterro de Polinices, por dever divinoDecreto proibindo o enterro, respaldado por sanções
JustificativaCostumes imutáveis dos deuses, vivos para sempreVisto como necessário para a ordem e estabilidade do estado
ConsequênciaO dever de enterrar os mortos é condenado por Creonte, mas conta com o apoio moral do coroMorte de Antígona e a decorrente tragédia pessoal de Creonte (morte de Haemon, Eurídice)
Perspectiva FilosóficaLeis injustas não são leis verdadeirasLei é comando do soberano, independente da moralidade
Nossas liberdades vieram de Deus
Tulsi Gabbard (1981), ex oficial da reserva do Exército dos EUA, é uma política americana. Em discurso de 2022, ela afirma:
“Nossa liberdade vem de Deus — não de qualquer outra pessoa ou governo. Reconhecer os outros como filhos de Deus é reconhecer que pertencemos a Deus — e a mais ninguém. Portanto, ninguém tem o direito de tirar a liberdade intrínseca que Deus nos deu.”
Assista ao discurso completo em: https://youtu.be/EOJB_IUB5ko

Conclusão

Antígona, belíssima peça de Sófocles, oferece uma exploração profunda do conflito entre direitos naturais e direito positivo. Através do diálogo entre Antígona e Creonte, mas não só nele, a peça dramatiza a luta entre dever moral e obrigação legal, com Antígona defendendo leis divinas e Creonte insistindo na autoridade estatal. Essa tensão, continua a ressoar, desafiando-nos a refletir sobre mentalidades políticas opostas, uma em que reconhecem direitos dados por Deus e direitos naturais como antecedentes dos direitos positivos e por isso não podem ser retirados pelo Estado, em contraposição como mentalidades políticas estatistas que vêem o Estado como criador único de direitos e ao qual todos devem se submeter.

Texto Selecionado

SOPHOCLES.ANTIGONE. Translated into English by Ian Johnston. Vancouver Island University. Nanaimo, British Columbia. Canada. 2005 [Revised slightly and reformatted 2017, 2019] (tradução livre para o Português com o auxílio do Google Tradutor) (disponível em: https://johnstoniatexts.x10host.com/)

[Sai a Guarda. Creonte se vira para interrogar Antígona.]

Diga-me brevemente — não em um discurso longo —

você sabia que havia uma proclamação

proibindo o que você fazia?

ANTÍGONA

Eu já tinha ouvido falar.

Como não saberia? Era de conhecimento público.

CREONTE

E ainda assim ousaste quebrar essas mesmas leis?

ANTÍGONA

Sim. Zeus não me anunciou essas leis.                                                                  [450]

E a Justiça, vivendo com os deuses abaixo,

não enviou tais leis para os homens. Eu não considerei                            510

nada do que proclamaste forte o suficiente

para permitir que um mortal anulasse os deuses

e suas leis não escritas e imutáveis.

Elas não são apenas para hoje ou ontem,

mas existem para sempre, e ninguém sabe

onde surgiram pela primeira vez. Portanto, eu não pretendia

deixar que o medo de qualquer vontade humana

me levasse à punição entre os deuses.

Eu sei muito bem que vou morrer —                                                                       [460]

como não poderia? — não faz diferença                                                     520

o que decretares. E se eu tiver que morrer

antes do meu tempo, bem, considero isso um ganho.

Quando alguém tem que viver como eu,

cercado por tantas coisas más,

como pode deixar de encontrar um benefício

na morte? E assim, para mim, encontrar esse destino

não trará nenhuma dor. Mas se eu tivesse permitido

que o filho morto da minha mãe simplesmente jazesse ali,

um cadáver insepulto, então eu sentiria angústia.

O que está acontecendo aqui não me machuca nem um pouco.               530

Se você acha que o que estou fazendo agora é estúpido,

talvez eu esteja sendo acusada de tolice                                                    [470]

por alguém que é tolo.

CORO

É bastante claro

que o espírito dessa garota é apaixonado —

seu pai era o mesmo. Ela não tem senso

de compromisso em tempos difíceis.

CREONTE [para o Coro]

Mas você deveria saber que as vontades mais obstinadas

são as mais propensas a se quebrar. O ferro mais forte

temperado no fogo para torná-lo realmente duro —

é o tipo que você vê se estilhaçar com mais frequência.                            540

Sei muito bem que os cavalos mais tempestuosos

são domados por um pequeno freio. O orgulho não tem lugar

em ninguém que seja escravo do seu próximo.

Essa garota aqui já era muito insolente                                                                   [480]

ao contrariar as leis que havíamos proclamado.

Aqui ela novamente demonstra seu orgulhoso desprezo —

tendo cometido o ato, agora se gaba dele.

Ela ri do que fez. Bem, neste caso,

se ela conseguir o que quer e ficar impune,

então ela é a pessoa certa aqui, não eu. Não. Ela pode ser                                  550

filha da minha irmã, mais próxima de mim pelo sangue

do que qualquer pessoa da minha casa

que adore Zeus Herkeios em minha casa,

mas ela não escapará do meu castigo mais severo —

sua irmã também, a quem eu também acuso.                                                        (4)

(4) Zeus Herkeios refere-se ao Zeus do Pátio, um deus patrono da adoração dentro do lar.

Ela teve participação igual em todos os seus planos                                              [490]

para realizar este enterro. Vá chamá-la aqui.

Eu a vi agora mesmo dentro do palácio,

com a mente descontrolada, algum tipo de ataque.

[Os criados saem do palácio para buscar Ismênia.]

Quando as pessoas tramam suas travessuras no escuro                          560

suas mentes frequentemente as condenam antecipadamente,

revelando sua traição. Como desprezo

uma pessoa flagrada cometendo atos malignos

que então deseja glorificar o crime.

ANTÍGONA

Leve-me e mate-me — o que mais você quer?

CREONTE

Eu? Nada. Com isso, tenho tudo.

ANTÍGONA

Então por que adiar? Não há nada em suas palavras

que eu aprecie — que assim seja sempre!                                                  [500]

E o que eu digo te desagrada tanto.

Mas onde eu poderia obter maior glória                                                      570

do que enterrar meu próprio irmão?

Todos aqui confirmariam que isso lhes agrada

se seus lábios não estivessem selados pelo medo — ser rei,

que oferece todos os tipos de benefícios,

significa que você pode falar e agir como quiser.

CREONTE

Em toda Tebas, você é o único

que vê as coisas dessa maneira.

ANTÍGONA

Eles compartilham minhas opiniões,

mas mantêm a boca fechada só por sua causa.

CREONTE

Essas suas opiniões — tão diferentes das demais —

não lhe trazem nenhum sentimento de vergonha?                                     580 [510]

ANTÍGONA

Não — não há nada de vergonhoso em honrar

os filhos de minha mãe.

CREONTE

Você teve um irmão

morto lutando pelo outro lado.

ANTÍGONA

Sim — da mesma mãe e do mesmo pai também.

CREONTE

Por que então pagar tributos que insultam o seu nome?

ANTÍGONA

Mas o seu cadáver não confirmará o que você diz.

CREONTE

Sim, ele confirmará, se você der honras iguais

a um homem perverso.

ANTÍGONA

Mas quem morreu

não era um escravo — era seu próprio irmão.

CREONTE

Que estava destruindo esta terra — o outro                                                           590

foi para a morte defendendo-a.

ANTÍGONA

Pode ser,

mas Hades ainda deseja ritos iguais para ambos.                                      (5)

(5) Hades, irmão de Zeus, é deus do submundo, senhor dos mortos

CREON

Um homem bom não deseja que o que lhe damos                                     [520]

seja o mesmo que um homem mau recebe.

ANTÍGONE

Quem sabe? No mundo subterrâneo, talvez

tais ações não sejam crime.

CREONTE

Um inimigo

nunca pode ser um amigo, nem mesmo na morte.

ANTÍGONA

Mas minha natureza é amar. Não posso odiar.

CREONTE

Então desça aos mortos. Se você precisa amar,

ame-os. Nenhuma mulher vai me governar —                                                        600

não, não — não enquanto eu ainda estiver vivo.

Perguntas para reflexão

1. Em um país onde tudo é regulado pelo Estado, qual a utilidade de defender a existência dos direitos naturais?

2. Em que circunstâncias o direito positivo se torna abusivo e como seu abuso pode ser limitado?

3. O direito natural pode ser usado como instrumento de resistência ao despotismo estatal? Dado que os movimentos de desobediência civil, de Gandhi a Martin Luther King Jr., foram inspirados por Antígona, quais critérios devem determinar quando a resistência pacífica às leis é moralmente justificável?

4. Uma tese em um processo judicial baseada em direitos naturais é legal? Se não, deveria ser? Em que circunstâncias?

5. Como o apelo de Antígona às “leis não escritas e imutáveis” dos deuses desafia a autoridade dos decretos estatais e quais implicações isso tem para os debates contemporâneos sobre se os governos podem anular os direitos humanos universais em nome da segurança nacional?

6. Reflita sobre a justificativa de Creonte para seu decreto, enfatizando o papel do Estado como um “navio que nos mantém seguros” — de que maneiras isso pode espelhar a retórica política moderna em torno de poderes de emergência ou leis antiterrorismo que priorizam a ordem em detrimento das liberdades individuais?

7. O texto o apoio moral que Antígona recebe do coro — como isso pode refletir o papel da opinião pública na defesa da justiça natural e como se relaciona com os movimentos impulsionados pelas mídias sociais que desafiam os excessos do governo hoje?

8 .O quadro “Nossas Liberdades Vieram de Deus” conecta os temas de Antígona ao discurso de Tulsi Gabbard sobre as liberdades dadas por Deus — como essa perspectiva pode influenciar as discussões políticas atuais sobre liberdade religiosa versus mandatos estatais, como a exigência de vacinas ou políticas de censura?

9. Se Antígona representa o “texto fundamental da desobediência civil” que ainda inspira movimentos de resistência, como as sociedades democráticas devem equilibrar a ordem pública com o direito à dissidência consciente?

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