Introdução: Contexto Histórico e Biografia
Aurélio Agostinho, chamado Santo Agostinho, nascido em 354 em Tagaste (atual Argélia) e falecido em 430, foi um dos mais influentes pensadores cristãos, convertendo-se ao cristianismo em 386 e tornando-se bispo de Hipona (atual cidade de Annaba na Argélia) em 396. Seu período foi marcado pelo declínio do Império Romano, especialmente após o saque de Roma pelos visigodos em 410, evento que fortemente influenciou sua obra A Cidade de Deus, concluída entre 413 e 426.
Figura 8. Santo Agostinho de Hipona recebendo o Mais Sagrado Coração de Jesus.

Autor: Philippe de Champaigne (1602-1674), domínio público, via Wikimedia Commons.
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Saint_Augustine_by_Philippe_de_Champaigne.jpg
As ideais de Agostinho refletem a transição do mundo antigo para o medieval, com impacto significativo na teologia e na filosofia política.
Do Livre-Arbítrio
‘O Livre-arbítrio’ é obra central de Agostinho, refletindo sua visão sobre a natureza humana. O tema da obra é o problema da liberdade humana e da origem do mal moral (o pecado).
Agostinho argumenta que Deus criou o homem com a capacidade de escolher entre bem e mal. Assim, cometer o mal nada mais é do que submeter sua vontade às paixões, buscar satisfação pessoal em coisas terrenas ao invés dos bens eternos decorrentes da fé.
A Cidade dos Homens e Cidade de Deus
Também no cerne do pensamento político de Agostinho está na distinção entre a cidade dos homens e a cidade de Deus, detalhada em ‘A Cidade de Deus’.
A cidade dos homens é descrita como “temporal e falha”, refletindo a ideia de que sociedades humanas são imperfeitas devido ao mal uso do livre-arbítrio. Essa cidade é caracterizada pelo amor-próprio, levando a ambição, conflitos e injustiças.
Na cidade dos homens, governos e instituições são produtos dessa falibilidade, onde o livre-arbítrio frequentemente leva a ambição, conflitos e injustiças. O Estado, necessário para conter o mal, é visto como um remédio para o pecado, mas também falho, pois governantes, usando seu livre-arbítrio, podem abusar do poder, resultando em tirania ou guerras injustas.
Em contraste, a cidade de Deus é fundamentada no amor a Deus e na aspiração ao bem eterno. Não é uma entidade física, mas uma comunidade espiritual de fiéis, guiada por justiça, caridade e humildade, onde a verdadeira felicidade é encontrada.
Agostinho detalha a história como sendo a narrativa do conflito entre essas duas cidades. Ao longo da história, os cidadãos das duas cidades coexistem, criando tensões. Na cidade dos homens, o livre-arbítrio perpetua a desordem; na cidade de Deus, é um instrumento de redenção. Essa interação reflete a fragilidade das instituições humanas, sempre vulneráveis à falha moral.
No fim dos tempos, na cidade de Deus, o livre-arbítrio é redimido, permitindo que os fiéis escolham o amor a Deus e se alinhem com a vontade divina, alcançando a verdadeira paz e justiça.
| Ronald Reagan sobre a Liberdade Religiosa Ronald Wilson Reagan (1911–2004) foi o 40º Presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989. Em uma Conferência sobre Liberdade Religiosa realizada em 16 de abril de 1985, ele disse: “A história da religião e seu impacto na civilização não podem ser resumidos em poucos dias ou — muito menos em minutos. Mas uma das grandes características compartilhadas por todas as religiões é a distinção que elas fazem entre o mundo temporal e o mundo espiritual. Todas as religiões, com efeito, ecoam as palavras do Evangelho de São Mateus: “Dai, pois, a César o que é de César; e a Deus o que é de Deus.” O que essa injunção nos ensina é que o indivíduo não pode ser inteiramente subordinado ao Estado, que existe um reino completamente diferente, um reino quase misterioso de pensamento e ação individual que é sagrado e que está totalmente além e fora do controle do Estado. Essa ideia tem sido central para o desenvolvimento dos direitos humanos. Somente em um clima intelectual que distingue entre a cidade de Deus e a cidade do homem e que afirma explicitamente a independência do reino de Deus e proíbe qualquer violação das prerrogativas do Estado, somente em tal clima a ideia de direitos humanos individuais poderia criar raízes, crescer e, eventualmente, florescer. Vemos esse clima em todas as democracias e em nossa própria tradição política. Os fundadores de nossa república basearam seu compromisso democrático na crença de que todos os homens são dotados por seu Criador com certos direitos inalienáveis. E assim, eles criaram um sistema de governo cujo propósito declarado era e é a proteção desses direitos concedidos por Deus. Mas, como todos vocês sabem muito bem, existem muitos regimes políticos hoje que rejeitam completamente a noção de que um homem ou uma mulher pode ter maior lealdade a Deus do que ao Estado. A percepção central de Marx ao criar seu sistema político era que a crença religiosa subverteria suas intenções. Sob o sistema comunista, o partido governante reivindicaria para si os atributos que a fé religiosa atribui somente a Deus, e o Estado seria o árbitro final da juventude — ou da verdade, Eu diria justiça e moralidade. Acho que dizer juventude em vez de verdade foi apenas uma espécie de lapso freudiano da minha parte. [Risos] Marx declarou a religião inimiga do povo, uma droga, um ópio das massas. E Lenin disse: “Religião e comunismo são incompatíveis tanto na teoria quanto na prática… Devemos combater a religião.” Tudo isso ilustra uma verdade que, acredito, deve ser compreendida. O ateísmo não é um elemento incidental do comunismo, não é apenas parte do pacote; é o pacote. Em países que caíram sob o domínio comunista, muitas vezes é a Igreja que forma a barreira mais poderosa contra um sistema completamente totalitário. E assim, regimes totalitários sempre buscam destruir a Igreja ou, quando isso é impossível, subvertê-la.” (O discurso completo pode ser lido em: https://www.reaganlibrary.gov/archives/speech/remarks-conference-religious-liberty) |
A Natureza do Poder e do Estado
Agostinho vê o Estado como um remédio para o pecado, necessário para conter a desordem, mas não como um fim em si mesmo. Em ‘A Cidade de Deus’, ele define o Estado como uma associação de pessoas unidas por um consenso sobre o bem comum, avaliando sua moralidade pelo objetivo último. A cidade dos homens busca a paz, entendida como ordem natural e subordinação, desde o controle emocional até a hierarquia estatal, mas essa paz é sempre precária e incompleta.
O conceito de livre-arbítrio influencia a visão de Agostinho sobre o poder e a autoridade. Ele defende que governantes devem usar seu livre-arbítrio para promover o bem comum, mas devem reconhecer que sua autoridade deriva de Deus e governar com justiça e humildade. A lei humana, para Agostinho, deve ser orientada pela lei divina, pois apenas assim o livre-arbítrio pode ser canalizado para o bem. Isso reflete sua crença na supremacia da cidade de Deus sobre a cidade dos homens, onde o livre-arbítrio, sem graça, frequentemente leva a abusos, como a coerção religiosa ou guerras injustas.
Sobre a escravidão, Agostinho a vê como um mal útil para manter ordem, mas não justificado moralmente.
Guerra e Paz: Teoria da Guerra Justa
Agostinho desenvolve a teoria da guerra justa (bellum iustum), argumentando que a guerra pode ser legítima se declarada por autoridade competente, com causa justa e intenção de promover a paz. No entanto, ele reconhece que a guerra é um resultado do pecado, sendo um mal necessário em um mundo caído. A paz perfeita só existe na cidade de Deus, enquanto a paz temporal é sempre frágil e moralmente neutra, perseguida por ambas as cidades.
A teoria da guerra justa de Agostinho também está conectada ao livre-arbítrio. Para ele, o livre-arbítrio é tanto a causa da necessidade de guerra quanto a base para a possibilidade de uma guerra justa, refletindo a ambiguidade da condição humana na cidade dos homens.
Igreja e Estado: Distinção e Influência
Agostinho defende uma distinção entre Igreja e Estado, com a Igreja guiando moralmente e o Estado mantendo ordem civil. No entanto, ele acredita que o Estado deve apoiar o cristianismo, refletindo a supremacia da lei divina. Essa visão influenciou a ideia medieval das “duas espadas”, com a Igreja tendo autoridade espiritual e o Estado temporal, mas subordinado aos princípios morais da Igreja.
Ele também justifica a coerção religiosa, defendendo o uso da força para compelir hereges (como os donatistas) a retornar à Igreja, argumentando que isso é um ato de amor paternalista, comparável a um pai disciplinando filhos ou contendo um louco.
Conexão com o Diagrama Circular de Mentalidades Políticas
O pensamento de Agostinho é uma das bases do pensamento Conservador Tradicionalista, um dos ramos dos Conservadores Autoritários, caracterizado pelo seu apoio à autoridade legítima e à necessidade de ordem para conter o pecado, com forte ênfase em bases morais e religiosas. Sua visão da cidade dos homens como falha ressoa com perspectivas conservadoras que destacam a imperfeição humana e a necessidade de estruturas morais.
Influência no Pensamento Político Posterior
Agostinho influenciou profundamente a teoria política medieval, especialmente a ideia das “duas espadas”, que justificava a distinção entre poder espiritual e temporal, mas também a supremacia da Igreja em questões morais.
Seu legado inclui uma visão pessimista sobre a capacidade humana de criar sociedades perfeitas, enfatizando a necessidade de humildade e vigilância, e continua relevante em discussões contemporâneas sobre o papel da religião na política e as limitações do poder estatal.
Tabela Resumo: Aspectos Centrais do Pensamento Político de Agostinho
| Aspecto | Descrição |
| Cidade dos Homens | Temporal, falha, marcada por pecado, amor-próprio e conflitos. |
| Cidade de Deus | Espiritual, eterna, baseada no amor a Deus, verdadeira justiça e felicidade. |
| Estado | Necessário para ordem, mas limitado, incapaz de salvação, subordinado à Igreja. |
| Guerra Justa | Legítima se por autoridade competente, causa justa e intenção de paz, resultado do pecado. |
| Igreja e Estado | Distinção clara, com Igreja guiando moralmente e Estado apoiando a religião. |
| Influência | Fundamentou teoria medieval das “duas espadas”, impacto em São Tomás de Aquino e além. |
| Conversão | Justifica a coerção religiosa, defendendo o uso da força para compelir hereges. |
Conclusão
Santo Agostinho oferece uma visão profunda sobre a falibilidade da cidade dos homens e a esperança da cidade de Deus, destacando a limitação das instituições humanas e a necessidade de uma base moral divina. Sua filosofia, enraizada no contexto cristão, fornece insights perenes sobre justiça, autoridade e o papel da religião, sendo um dos autores fundamentais para os Conservadores Tradicionalistas (um dos tipos de conservadores autoritários) no diagrama circular.
Textos selecionados
Santo Agostinho. Do livre-arbítrio. Tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira; revisão Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus.1995.
LIVRO I. O PECADO PROVÉM DO LIVRE-ARBÍTRIO
INTRODUÇÃO. O PROBLEMA DO MAL
(…)
Capítulo 6
Solução: saber distinguir a lei eterna das leis temporais
14. (….)
Responde-me, primeiramente: essa lei que se promulga nos códigos é ela, na verdade, útil aos homens que vivem aqui na terra?
Evódio (Ev.). Evidentemente que sim, pois os povos e as cidades são constituídos por homens.
Agostinho (Ag.). E esses mesmos homens e povos pertencem eles à categoria das coisas que não podem perecer nem mudar, por serem eternos, ou, ao contrário, são eles mutáveis e sujeitos ao fluxo do tempo?
Ev. Quem duvida que a espécie humana seja mutável e sujeita às vicissitudes do tempo?
Ag. Logo, quando um povo for de costumes moderados e dignos, guardião diligente da utilidade pública, a ponto de cada um preferir o bem comum ao seu interesse particular, não seria justo ao dito povo poder promulgar uma lei que lhe permitisse nomear para si magistrados encarregados de administrar os seus negócios, isto é, os negócios públicos?
Ev. Seria muito justo, sem dúvida.
Ag. Contudo, no caso de esse mesmo povo ir caindo aos poucos, depravando-se, e caso ponha o seu interesse particular acima do interesse público, e vier a vender o seu sufrágio livre, por dinheiro? Além do mais, corrompido por aqueles que ambicionam as honras, confiar o governo a homens malvados e criminosos, não seria justo — caso ainda se encontrasse um só homem de bem, revestido de influência excepcional — que esse homem tirasse do povo a faculdade de poder distribuir as honras, para depositar a decisão nas mãos de alguns poucos cidadãos honestos ou mesmo de um só que fosse?
Ev. Isso também seria muito justo.
Ag. Eis, pois, duas leis que parecem estar em contradição entre si. Uma delas confere ao povo o poder de eleger os seus magistrados; a outra recusa-lhe essa prerrogativa. E a segunda lei mostra-se expressa em tais moldes que as duas não podem de modo algum coexistir juntas, na mesma cidade. Assim sendo, haveríamos de dizer que uma delas é injusta e não deveria ter sido promulgada?
Ev. De modo algum.
Ag. Denominemos, pois, se o quiseres, de temporal a essa lei que a princípio é justa, entretanto, conforme as circunstâncias dos tempos, pode ser mudada, sem injustiça.
Ev. Assim seja.
Noção da lei eterna
15. Ag. Mas quanto àquela lei que é chamada a Razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz e os maus vida infeliz, é ela o fundamento da retidão e das modificações daquela outra lei que justamente denominamos temporal, como já explicamos? Poderá a lei eterna parecer, a quem quer que reflita a esse respeito, não ser imutável e eterna ou, em outros termos, poderá ela ser alguma vez considerada injusta, quando os maus tornam-se desaventurados e os bons, bem-aventurados? Ou então, que a um povo de costumes pacíficos seja dado o direito de eleger os seus próprios magistrados, ao passo que a um povo dissoluto e pervertido seja-lhe retirado esse direito?
Ev. Reconheço que tal lei é eterna e imutável.
Ag. Reconhecerás também, espero, que na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna. Assim, no mencionado exemplo do povo que, às vezes, tem justamente o direito de eleger seus magistrados e, às vezes, não menos justamente, não goza mais desse direito, a justiça dessas diversidades temporais procede da lei eterna, conforme a qual é sempre justo que um povo sensato eleja seus governantes e que um povo irresponsável não o possa. Acaso és de opinião diferente?
Ev. Sou dessa mesma opinião.
Ag. Então, para exprimir em poucas palavras, o quanto possível, a noção impressa em nosso espírito dessa lei eterna, direi que ela é aquela lei em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas. Se tens, porém, outra opinião, apresenta-a.
Ev. Nada tenho a te contradizer, pois dizes a verdade.
Ag. E como tal lei superior é a única sobre a qual todas as leis temporais regulam as mudanças a serem introduzidas no governo dos homens, poderá ela, por causa disso, variar em si mesma de algum modo?
Ev. Compreendo que não o possa de modo algum. Com efeito, nenhuma força, nenhum acontecimento, nenhuma catástrofe nunca conseguirá fazer com que não seja justo que todas as coisas estejam conformes a uma ordem perfeita.
(…)
LIVROII. A PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS REVELA-O COMO FONTE DE TODO BEM. DEUS NÃO É O AUTOR DO MAL, MAS DO LIVRE-ARBÍTRIO, QUE É UM BEM
INTRODUÇÃO.POR QUE NOS DEU DEUS A LIBERDADE DE PECAR?
Capítulo 1 O livre-arbítrio vem de Deus
1. Ev. Se possível, explica-me agora a razão pela qual Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio da vontade, já que, caso não o houvesse recebido, o homem certamente não teria podido pecar.
Ag. Logo, já é para ti uma certeza bem definida haver Deus concedido ao homem esse dom, o qual supões não dever ter sido dado.
Ev. O quanto me parece ter compreendido no livro anterior, é que nós não só possuímos o livre-arbítrio da vontade, mas acontece ainda que é unicamente por ele que pecamos.
Ag. Também me recordo de termos chegado à evidência a respeito desse ponto. Mas, no momento, eu te pergunto o seguinte: esse dom que certamente possuímos e pelo qual pecamos, sabes1 que foi Deus quem no-lo concedeu?
Ev. Na minha opinião, ninguém senão ele, pois é por ele que existimos. E é dele que merecemos receber o castigo ou a recompensa, ao pecar ou ao proceder bem.
Ag. Mas o que eu desejo saber é se compreendes com evidência esse último ponto. Ou se, levado pelo argumento da autoridade, crês de bom grado, ainda que sem claro entendimento.
Ev. Na verdade, devo afirmar que, sobre esse ponto, eu aceitei-o primeiramente dócil à autoridade. Mas o que poderia haver de mais verdadeiro do que as seguintes asserções: tudo o que é bom procede de Deus. E tudo o que é justo é bom. Ora, existe algo mais justo do que o castigo advir aos pecadores, e a recompensa aos que procedem bem? Donde a conclusão: é Deus que atribui o infortúnio aos pecadores e a felicidade aos que praticam o bem.
2. Ag. Nada tenho a opor. Mas apresento-te esta outra questão: Como sabes que existimos por virmos de Deus? Isso de fato não é o que acabas de explicar, mas sim que dele nos vem o merecer, seja o castigo, seja a recompensa.
Ev. Parece-me ser isso igualmente evidente, visto que não por outra razão, a não ser porque temos já por certo que Deus castiga os pecados, visto que toda justiça dele procede. Ora, se é próprio da bondade fazer o bem a pessoas estranhas, não é próprio da mesma justiça infligir castigos a quem não são devidos. Por onde, ser evidente que nós lhe pertencemos, posto que ele é para conosco não somente cheio de bondade, concedendo-nos seus dons, mas ainda justíssimo, ao castigar-nos. Além de que, já o afirmei antes, e tu o aprovaste, todo bem procede de Deus. Isso nos faz compreender que o homem também procede de Deus. Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem a possibilidade, quando o quer, de viver retamente.
3. Ag. Realmente, e se é essa a questão por ti proposta, já está claramente resolvida. Pois, se é verdade que o homem em si seja certo bem, e que não poderia agir bem, a não ser querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia proceder dessa maneira. Com efeito, não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para pecar, que é preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão suficiente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente. Ora, que ela tenha sido concedida para esse fim pode-se compreender logo, pela única consideração que se alguém se servir dela para pecar, recairão sobre ele os castigos da parte de Deus. Ora, seria isso um injustiça, se a vontade livre fosse dada não somente para se viver retamente, mas igualmente para se pecar. Na verdade, como poderia ser castigado, com justiça, aquele que se servisse de sua vontade para o fim mesmo para o qual ela lhe fora dada?
Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão estas palavras: “Eu te castigo porque não usaste de tua vontade livre para aquilo a que eu a concedi a ti”? Isto é, para agires com retidão. Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre. Ora, era preciso que a justiça estivesse presente no castigo e na recompensa, porque aí está um dos bens cuja fonte é Deus.
Conclusão, era necessário que Deus desse ao homem vontade livre.
Santo Agostinho. A cidade de Deus. Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
(…)
Livro IV
(…)
CAPÍTULO IV
Os reinos sem justiça assemelham-se a uma quadrilha de ladrões.
Afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos se não grandes quadrilhas de ladrões? Que é que são, na verdade, as quadrilhas de ladrões senão pequenos reinos?
Estas são bandos de gente que se submete ao comando deum chefe, que se vincula por um pacto social e reparte apresa segundo a lei por ela aceite. Se este mal for engrossando pela afluência de numerosos homens perdidos, aponto de ocuparem territórios, constituírem sedes, ocuparem cidades e subjugarem povos arroga-se então abertamente o título de reino, título que lhe confere aos olhos de todos, não a renúncia à cupidez, mas a garantia da impunidade.
Foi o que com finura e verdade respondeu a Alexandre Magno certo pirata que tinha sido aprisionado. De facto, quando o rei perguntou ao homem que lhe parecias ao de infestar os mares, respondeu ele com franca audácia: «O mesmo que a ti parece isso de infestar todo o mundo; mas a mim, porque o faço com um pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti porque o fazes com uma grande armada, chamam-te imperador».
(…)
Santo Agostinho. Carta 93 (A Vincentius)
Capítulo 9 (Parágrafo 28)
“Agora você vê, portanto, suponho, que o que deve ser considerado quando alguém é coagido não é o mero fato da coerção, mas a natureza daquilo a que é coagido, seja bom ou mau: não que alguém possa ser bom apesar de sua própria vontade, mas que, por medo de sofrer o que não deseja, ele ou renuncia a seus preconceitos hostis, ou é compelido a examinar a verdade da qual era contentemente ignorante; e sob a influência desse medo repudia o erro que costumava defender, ou busca a verdade da qual antes nada sabia, e agora voluntariamente defende o que antes rejeitava. Talvez fosse totalmente inútil afirmar isso em palavras, se não fosse demonstrado por tantos exemplos. Vemos não poucos homens aqui e ali, mas muitas cidades, outrora donatistas, agora católicos, detestando veementemente o cisma diabólico e amando ardentemente a unidade da Igreja; e estes se tornaram católicos sob a influência daquele medo que vos é tão ofensivo pelas leis dos imperadores, desde Constantino, perante quem o vosso partido, por sua própria iniciativa, impugnou Cecílio, até aos imperadores da nossa época, que decretam com toda a justiça que a decisão do juiz que o vosso próprio partido escolheu, e que eles preferiram a um tribunal de bispos, deve ser mantida em vigor contra vós.”
Perguntas para reflexão
1. Há virtude sem livre-arbítrio? Ou, uma pessoa que meramente cumpre a lei sob pena de sanção (ou por outra razão que o torna incapaz para o mal) pode ser considerada uma pessoa virtuosa?
2. Segundo Agostinho, a lei não deveria tentar forçar as pessoas a fazer o que é certo ou a evitar o que é errado, mas orientar as pessoas a serem justas. Como criar um ordenamento jurídico assim? Como conciliar tal prescrição com o entendimento, também de Agostinho, de legitimidade da coerção religiosa (uso da força para compelir hereges)?
3. Imagine uma hipotética invasão islâmica tomando alguns países da Europa. Você defenderia uma guerra justa contra o Islã? E a coerção como mecanismo de conversão? Qual o limite de coerção aceitável?
4. Que tipo de pessoas produz um Estado totalitário, que regula todos os aspectos da vida humana, com vigilância total (como a URSS em que os filhos eram doutrinados a vigiar e denunciar os pais, ou como o crédito social Chinês, que pretende vigiar todas as ações dos cidadãos chineses, por todos os meios disponíveis e pontua suas condutas para fins de emprego, crédito e outros)?
5. O que legitima um governo tributar (imposto é roubo, dirão alguns libertários) e o distingue de uma quadrilha de ladrões?
6. É possível um governo que não seja falho, imperfeito?
7. Considere que a igreja é composta por seres humanos, falíveis, portanto. Ainda assim, diretrizes morais da Igreja para os governantes são um bom controle para as ações Estatais?
8. Considere a perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Considere também o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt em “Eichman in Jerusalém” (o mal não é necessariamente motivado por pessoas com motivações demoníacas ou paixões profundas, mas por pessoas incapacidade de efetuar julgamentos morais, agindo de forma burocrática, com muita obediência e falta de reflexão). Agostinho estava certo quando via o mal como a ausência de bem (de Deus)? Podemos considerar como bons homens os que simplesmente não se intrometem (não é meu problema, dizem alguns), quando veem o mal ocorrer? Qual a postura esperada de homens bons?
9. Segundo Agostinho:
“(…) a vontade do homem é atraída ou repelida conforme a diversidade dos objetos que procura ou evita e assim se muda ou transforma nestes diferentes afetos. Por isso o homem que vive, não em conformidade com o homem, mas em conformidade com Deus, tem de amar a Deus. E como ninguém é mau por natureza, mas por vício, o que vive em conformidade com Deus deve ter para com os maus um perfeito ódio, sem, todavia, odiar o homem por causa do vício nem amar o vício por causa do homem: deve apenas odiar o vício e amar o homem. Assim, uma vez curado o vício, tudo o que ele deve amar permanecerá e nada permanecerá do que deve odiar.“
O que significa exatamente amar um homem que cometeu um crime odioso e odiar apenas o crime? Tal filosofia se contrapõe ou é aplicável ao direito penal? Como?

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