III. A lei divina deve orientar a ação estatal em busca do bem comum, segundo Tomás de Aquino (1225-1274)

Contexto Histórico e Biográfico

Tomás de Aquino (1225-1274), um dominicano medieval, é uma figura central na filosofia política, conhecido por integrar a filosofia aristotélica com a teologia cristã.

Em sua obra Suma Teológica (1265-1273), aborda a natureza da lei, ética e governança. Sua visão reflete a mentalidade em que a moral cristã deveria guiar a ação estatal, caracterizando-se como um conservador tradicionalista (que classificamos como conservador autoritário, muito próximo dos moderados), mas cujas ideais influenciaram pensadores Conservadores Autoritários e Moderados e mesmo Liberais Clássicos.

Figura 9. Santo Tomás de Aquino.

Autor: Bartolomé Esteban Murillo

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bartolom%C3%A9_Esteban_Murillo_Santo_Tom%C3%A1s_de_Aquino.jpg

Conceito de Lei Divina

Aquino define a lei divina como revelada por Deus, principalmente pela Bíblia.

Distingue a lei do Antigo Testamento (e.g., Dez Mandamentos) do Novo Testamento (e.g., Evangelhos), considerando a primeira imperfeita, externa, baseada no medo, uma mera preparação para a segunda, considerada perfeita, interna, baseada no amor e na caridade.

A Lei Antiga preparou o caminho para Cristo, sendo como um “pedagogo” (Gálatas 3:24), com seus preceitos cerimoniais e judiciais temporários, enquanto os morais permanecem.

A Nova Lei justifica diretamente por meio de Cristo, explicando o verdadeiro significado dos antigos preceitos e acrescentando conselhos para a perfeição (“justificação”, para Tomás de Aquino, refere-se ao processo teológico pelo qual um pecador é transformado de um estado de pecado e separação de Deus para um estado de retidão, ou justiça, e amizade com Deus). Essa lei faz parte da lei eterna, a sabedoria divina que governa o universo, mas é dirigida aos humanos para guiá-los à salvação.

Tabela. Distinções da lei do Antigo Testamento da lei do Novo Testamento

AspectoLei do Antigo TestamentoLei do Novo Testamento
FimSubmissão a Deus, mas imperfeita, baseada no medo Mesmo fim, mas perfeita, baseada na caridade (caritas in Latin, meaning divine love or agape)
NaturezaImperfeita, externa, como um pedagogo, focada em atos externosPerfeita, interna, focada em disposição interior, lei do amor
GraçaNão concedeu o Espírito Santo de uma maneira que infundisse e espalhasse diretamente o amor divino nos corações dos crentes como um efeito geral ou intrínseco da própria Lei, embora alguns o tivessem recebido (tais como os patriarcas e os profetas).Sua natureza superior deriva sua preeminência da graça espiritual, espalhando caridade nos corações
PreceitosMorais, cerimoniais e judiciais, muitos atos externos (e.g., circuncisão)Menos preceitos adicionais, focados em morais e sacramentais (e.g., Eucaristia)
CumprimentoPrefigurava justificação, cerimoniais como sombras Cumpre a Antiga, justifica por Cristo, explica sentido verdadeiro
CargaMais pesada devido a cerimônias, externa, mais fácil sem virtudeMais leve, interna, difícil sem virtude, mas aliviada pelo amor
ConteúdoContém a Nova Lei virtualmente, como semente Declara explicitamente o implícito, e.g., fé

A Lei divina é complementada pela lei natural, a participação da lei eterna na razão humana, permitindo que os seres humanos discirnam o bem e o mal.

Em termos políticos, as leis humanas devem alinhar-se à lei natural e divina para serem legítimas, refletindo princípios morais universais. Por exemplo, na Suma Teológica (ST I-II q. 90 a. 2), ele argumenta que “a lei é a ordenação da razão para o bem comum, promulgada pelo chefe da comunidade, guiada pela razão divina”.

O Bem Comum como Objetivo

O bem comum, para Aquinas, é o fim último da comunidade política. Isso inclui paz, justiça, segurança e condições para o florescimento humano, abrangendo bens temporais e espirituais, já que o fim último é Deus. O estado, como uma “comunidade completa”, deve promover isso, mas está limitado por normas morais derivadas da lei divina, como não matar inocentes, não mentir ou não praticar sexo extraconjugal. Essas limitações asseguram que as ações estatais alinhem-se ao bem comum, promovendo virtude, especialmente justiça, mas sem coercitivamente impor virtudes privadas além do público, como a relação com Deus.

Marco Rubio e a promoção do bem comum.
Marco Antonio Rubio (1971) é um político e advogado americano, atuando como Secretário de Estado dos Estados Unidos.
Em seu discurso de abertura perante o Comitê de Relações Exteriores do Senado, em 15 de janeiro de 2025, ele menciona que foi chamado, como Secretário de Estado, para promover o bem comum:
Quero também reconhecer todas as bênçãos que Deus me concedeu em minha vida. Minha fé é fundamental e é algo em que me apoiarei e confiarei fortemente nos próximos meses. Em um mundo tumultuado, onde minha fé – somos chamados a promover a causa da paz e do bem comum, e essa tarefa se tornou mais difícil do que nunca. E confiarei fortemente na minha fé e orarei pelas bênçãos de Deus, para que Ele me dê a força, a sabedoria e a coragem para fazer o que é certo nestes momentos delicados.
(o discurso completo pode ser lido em https://www.state.gov/opening-remarks-by-secretary-of-state-designate-marco-rubio-before-the-senate-foreign-relations-committee)

Relação entre Lei Divina e Ação Estatal

Aquino argumenta que a lei divina deve guiar o estado porque o bem comum inclui o fim espiritual dos cidadãos. Governantes têm o dever de promover virtude, mas reconhecem limites, como não impor coercitivamente a fé, respeitando a liberdade religiosa.

Na Suma Teológica (ST I-II q. 98 a. 1, q. 100 a. 2), ele limita a jurisdição coercitiva do estado a atos externos afetando o bem público (buscando a tranquilidade temporal da cidade), não a moralidade privada além da justiça. Em casos de conflito, leis humanas contrárias à lei divina não são verdadeiras leis, e os cidadãos não estão obrigados a obedecê-las.

Além disso, ele considera leis que servem apenas aos interesses do governante como tirânicas, uma “perversão da lei” (ST I-II q. 92 a 1 ad 4 & 5; II-II q. 69 a. 4). Nesse contexto, ele justifica a resistência e, em casos extremos, a deposição de tiranos, desde que haja uma autoridade pública para assumir o bem comum, embora prefira a desobediência passiva devido a possíveis efeitos colaterais (ST II-II q. 42 a. 2 ad 3, q. 104 a. 6 ad 3).

Relevância Contemporânea

Embora sua visão seja profundamente teológica, seus princípios, como a primazia do bem comum, limitações morais ao poder estatal e direito de resistência à tirania, ressoam em debates modernos de todo o espectro político da direita, especialmente entre os conservadores tradicionalistas.

Tabela Resumo: Ideias-principais de Tomás de Aquino

ConceitoDescrição
Lei DivinaRevelada por Deus, guia para salvação, complementa lei natural.
Lei NaturalParticipação da lei eterna na razão humana, base para leis justas.
Bem ComumCondições sociais para florescimento humano, inclui bens temporais e espirituais.
Limitações do EstadoDeve seguir normas morais (e.g., não matar inocentes), evitar tirania.
Resistência à TiraniaJustificada se houver autoridade pública para assumir o bem comum, preferência por desobediência passiva.

Conclusão

Tomás de Aquino propôs que a lei divina deve orientar a ação estatal para buscar o bem comum, integrando fé e razão. Sua filosofia, enraizada na teologia cristã, enfatiza limites morais ao poder estatal e justifica resistência à tirania, posicionando-se entre Conservadores Autoritários e Moderados. Apesar de controvérsias em contextos seculares, suas ideias continuam relevantes, especialmente em debates sobre religião e estado, refletindo sua influência duradoura na filosofia política.

Pontos Principais

  • A Lei do Amor, no Novo Testamento, é a lei divina por excelência, tendo suplantado as leis imperfeitas do Velho Testamento, que contém a Nova Lei virtualmente, como semente.
  • A lei divina deveria orientar as ações do Estado para alcançar o bem comum, enfatizando o florescimento moral e espiritual.
  • É justificável a resistência a governantes tirânicos que priorizam os interesses pessoais em detrimento do bem comum, defendendo um equilíbrio entre ordem e liberdade.

Textos selecionados

São Tomás de Aquino. Suma teológica. Livros Católicos para download.

Tratado da lei

(…)

Questão 91: Da diversidade das leis.

Em seguida devemos tratar da diversidade das leis. E nesta questão discutem-se seis artigos:

(…)

Questão 93: Da lei eterna.

Em seguida devemos tratar das leis, em particular. E primeiro, da lei eterna. Segundo, da lei natural. Terceiro, da lei humana. Quarto, da lei antiga. Quinto, da lei nova, que é a lei do Evangelho. E quanto à sexta lei, que é a do estímulo, basta o que já foi dito quando tratamos do pecado original.

Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei eterna é a razão suma existente em Deus.

(…)

SOLUÇÃO. — Assim como em todo artífice preexiste à razão do que ele faz, com a sua arte, assim também, em todo governante é necessário preexista à razão da ordem daquilo que devem fazer os que lhe estão sujeitos ao governo. E como a razão das coisas, que devem ser feitas pela arte, chama-se arte ou exemplar das coisas artificiadas, assim a razão de quem governa os atos dos súbditos assume a natureza de lei, salvo tudo quanto já foi dito a respeito da essência da lei (q. 90). Ora, Deus, com sua sabedoria, é o criador da universidade das coisas, para as quais está como o artífice, para as coisas artificiadas, conforme na Primeira Parte foi estabelecido (q. 14, a. 8). Pois, também é o governador de todos os atos e moções de cada criatura, segundo também se estabeleceu na Primeira Parte (q. 103, a. 5). Por onde, assim como a razão da sabedoria divina tem, como criadora de todas as coisas, natureza de arte, exemplar ou ideia; assim a razão dessa mesma sabedoria, que move todas as coisas para o fim devido, tem natureza de lei. E sendo assim, a lei eterna não é mais que a razão da sabedoria divina, enquanto diretiva de todos os atos e moções

(…)

Art. 3 — Se toda lei deriva da lei eterna.

(…)

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1, a. 2), a lei implica uma certa razão diretiva dos atos para um fim. Ora, em todos os motores ordenados, é necessário que a força do motor segundo derive da força do primeiro; pois aquele não move senão enquanto movido por este. E vemos o mesmo se passar com todos os governantes: a razão do governo deriva do primeiro governante para os segundos; assim como a razão do que deve, na cidade, ser feito, deriva do rei, por meio de um preceito, para os administradores subalternos. E também nas artes, a razão dos atos artísticos deriva do mestre de obras para os artífices inferiores, que obram manualmente. Por onde, sendo a lei eterna a razão do governo no supremo governador, é necessário que todas as razões do governo, existentes nos governantes inferiores, derivem dela. Ora, todas essas razões dos governantes inferiores são leis outras que não a lei eterna. Portanto, todas as leis, na medida em que participam da razão reta, nessa mesma derivam da lei eterna. E por isso Agostinho diz: Nada há de justo e legítimo, nas leis temporais, que os homens não tivessem para si ido buscar na lei eterna.

(…)

Questão 94: Da lei natural.

Em seguida, devemos tratar da lei natural. E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei natural é um hábito.

(…)

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que algo pode ser dito hábito de dois modos. De um modo, própria e essencialmente e, assim, a lei natural não é hábito. Foi dito acima que a lei natural é algo constituído pela razão, assim como a proposição é uma obra da razão. Ora, não é idêntico o que alguém faz e o por que alguém age: assim, alguém, pelo hábito da gramática, produz uma oração correta. Dado pois ser o hábito aquilo “por que” alguém age, não pode ocorrer que alguma lei seja hábito própria e essencialmente. De outro modo, pode dizer-se hábito aquilo que se possui por meio de um hábito, como se diz fé aquilo que se possui pela fé. E, desse modo, porque os preceitos da lei natural são por vezes considerados em ato pela razão; por vezes, porém, são-lhe inerentes de modo somente habitual, pode dizer-se do segundo modo ser a lei natural um hábito. Da mesma forma, os princípios indemonstráveis dos atos especulativos não são o próprio hábito dos princípios, mas são os princípios aos quais se refere o hábito.

(…)

Questão 95: Da Lei humana

Em seguida devemos tratar da lei humana.

E primeiro, da lei humana em si mesma. Segundo, do seu poder. Terceiro, da sua mutabilidade.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

(…)

Art. 2 — Se toda lei feita pelos homens é derivada da lei natural.

(…)

SOLUÇÃO. — Como diz Agostinho, não é considerado lei o que não for justo. Por onde, uma disposição é justa na medida em que tem a virtude da lei. Ora, na ordem das coisas humanas, chama-se justo ao que é reto segundo a regra da razão. E como da razão a primeira regra é a lei da natureza, conforme do sobredito resulta (q. 91, a. 2 ad 2), toda lei estabelecida pelo homem tem natureza de lei na medida em que deriva da lei da natureza. Se, pois, discordar em alguma coisa, da lei natural, já não será lei, mas corrupção dela.

Deve-se, porém, saber que, de dois modos pode ser a derivação da lei natural; como conclusões derivadas dos princípios, ou como determinações de certos princípios gerais. Ora, o primeiro modo é semelhante ao porque, nas ciências, derivam-se, dos princípios, conclusões demonstrativas. O segundo é semelhante ao que se dá com as artes, em que formas gerais se determinam em algo de especial. Assim, o artífice há de necessariamente determinar a forma geral, de modo a constituir a figura de uma casa. Por onde, certas disposições derivam dos princípios gerais da lei da natureza, a modo de conclusões; assim, o dever de não matar pode derivar, como conclusão, do princípio que a ninguém se deve fazer mal. Outras disposições derivam por determinação; assim, a lei da natureza estatui que quem peca seja punido; mas a pena com que deve sê-lo é uma determinação da lei da natureza.

Ora, ambos estes modos se encontram nas leis estabelecidas pelo homem. Porém, as disposições pertencentes ao primeiro modo estão contidas na lei humana, não só como estabelecidas por ela, mas também por elas receberem, da lei natural, algo do seu vigor. Ao passo que as disposições pertencentes ao segundo modo haurem o seu vigor só na lei humana.

(…)

Questão 96: Do poder da lei humana.

Em seguida devemos tratar do poder da lei humana.

E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei humana deve ser feita para o bem comum ou antes, para o particular.

(…)

SOLUÇÃO. — Tudo o que existe para um fim deve ser-lhe proporcionado. Ora, o fim da lei é o bem comum; pois, como diz Isidoro, a lei deve ser estabelecida para a utilidade comum dos cidadãos, e não, para a utilidade privada. Por onde, devem as leis humanas ser proporcionadas ao bem comum. Ora, este consta de muitos elementos, que portanto, a lei há de necessariamente visar; no concernente às pessoas, aos atos e aos tempos. Pois, a comunidade civil é composta de muitas pessoas, cujo bem é buscado por meio de muitas ações. Nem a lei é instituída para durar pouco tempo, mas para perdurar longamente, através da sucessão dos cidadãos, como diz Agostinho.

(…)

Art. 4 — Se a lei humana obriga no foro da consciência.

(…)

SOLUÇÃO. — As leis estabelecidas pelos homens são justas ou injustas. — Se justas, têm, da lei eterna, donde derivam, força para obrigar no foro da consciência, conforme àquilo da Escritura (Pr 8, 15): Por mim reinam os reis e por mim decretam os legisladores o que é justo. Ora, as leis se consideram justas: pelo fim, i. é, quando se ordenam para o bem comum; pelo autor, i. é, quando a lei feita não excede o poder do seu autor; e pela forma, i. é, quando, por igualdade proporcional, impõe ônus aos governados, em ordem ao bem comum. Ora, como cada homem e parte da multidão, cada um é da multidão por aquilo mesmo que é e que tem; assim como qualquer parte, por aquilo mesmo que a constitui, pertence ao todo; por isso, se a natureza faz sofrer à parte algum detrimento, é para salvar o todo. E assim sendo, as leis, que impõem tais ônus proporcionais, são justas, obrigam no foro da consciência e são leis legais.

Por outro lado, as leis injustas podem sê-lo de dois modos. — Por contrariedade com o bem humano, de modo oposto às razões que as tornam justas, antes enumeradas. Pelo fim, como quando um chefe impõe leis onerosas aos súbditos, não pertinentes à utilidade pública, mas antes, à cobiça ou à glória próprias deles; ou também pelo autor, quando impõe leis que ultrapassam o poder que lhe foi cometido; ou ainda pela forma, p. ex., quando impõe desigualmente ônus à multidão, mesmo que se ordenem para o bem comum. E estas são, antes, violências, que leis, pois, como diz Agostinho, não se considera lei o que não for justo. Por onde, tais leis não obrigam no foro da consciência, salvo talvez para evitar escândalo ou perturbações, por causa do que o homem deve ceder mesmo do seu direito, segundo a Escritura: E se qualquer te obrigar a ir carregando mil passos, vai com ele ainda mais outros dois mil; e ao que tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. — De outro modo, as leis podem ser injustas por contrariedade com o bem divino. Tais as leis dos tiranos, obrigando à idolatria, ou ao que quer que seja contra a lei divina. E tais leis de nenhum modo se devem observar, porque, como diz a Escritura (At 5, 29), importa obedecer antes a Deus que aos homens.

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Escritos políticos de São Tomás de Aquino. DO REINO OU DO GOVERNO DOS PRÍNCIPES. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto.

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Capítulo II

De como é necessário que o homem, vivendo em sociedade, seja governado por alguém

2. Para pôr em obra o nosso intento, cumpre começarmos pela exposição do que se há de compreender pelo nome de rei.

Ora, em todas as coisas ordenadas a algum fim, em que se possa proceder de um modo ou doutro, é mister haver algum dirigente, pelo qual se atinja diretamente o devido fim. Com efeito, um navio, que se move para diversos lados pelo impulso dos ventos contrários, não chegaria ao fim de destino, se por indústria do piloto não fora dirigido ao porto; ora, tem o homem um fim, para o qual se ordenam toda a sua vida e ação, porquanto age pelo intelecto, que opera manifestamente em vista do fim. Acontece, porém, agirem os homens de modos diversos em vista do fim, o que a própria diversidade dos esforços e ações humanos patenteia. Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim. Tem todo homem, dada naturalmente, a luz da razão, pela qual é dirigido ao fim, nos seus atos. E, se conviesse ao homem viver separadamente, como muitos animais, não precisaria de quem o dirigisse para o fim, senão que cada qual seria rei para si mesmo sob o supremo rei, Deus, uma vez que, pela luz da razão, a ele dado divinamente, a si mesmo dirigiria nos seus atos. É, todavia, o homem, por natureza, animal sociável e político, vivendo em multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela natural necessidade. Realmente, aos outros animais preparou a natureza o alimento, a vestimenta dos pêlos, a defesa, tal como os dentes, os chifres, as unhas ou, pelo menos, a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado sem a preparação de nada disso pela natureza, e, em lugar de tudo, coube-lhe a razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias mãos, todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja causa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si. Logo, é natural ao homem viver na sociedade de muitos.

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Capítulo III

De como é melhor que a multidão se governe por um só do que por muitos

8. Isto posto, cumpre indagar o que mais convém ao país ou à cidade: ser governado por muitos ou por um só. E isto se pode considerar a partir do próprio fim do governo. Deve ser a intenção de qualquer governante o procurar a salvação daquele cujo governo recebeu. Pois, compete ao piloto conduzir ilesa ao porto de salvamento a nave, guardando- a contra perigos do mar. Ora, o bem e salvamento da multidão consorciada é conservar-lhe a unidade, dita paz, perdida a qual, perece a utilidade da vida social, uma vez que é onerosa a si mesma a multidão dissensiosa. Por conseguinte, o máximo intento do governante deve ser o cuidar da unidade da paz. Nem é reto deliberar ele a não ser que produza a paz na multidão a ele sujeita, como não o é para o médico, a não ser que cure o enfermo a ele confiado. Realmente, ninguém delibera do fim que deve perseguir, mas sim do que se ordena ao fim. Daí dizer o Apóstolo (Ef 4,3), depois de recomendar a unidade do povo fiel: “Sede solícitos em conservar a unidade do espírito no vínculo da paz”. Assim, tanto mais útil será um regime, quanto mais eficaz for para conservar a unidade da paz. Dizemos, de fato, mais útil aquilo que melhor conduz ao fim. Ora, manifesto é poder melhor realizar unidade o que é de per si um só, que muitos, tal como a mais eficiente causa de calor é aquilo que de si mesmo é quente. Logo, é o governo de um só mais útil que o de muitos.

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Capítulo IV

De como, sendo ótimo o governo de um só, quando justo, assim também é péssimo o oposto a ele; o que se prova com muitas razões e argumentos

10. Assim, porém, como é ótimo o regime do rei, também é péssimo o governo do tirano. Opõe-se à politia a democracia, sendo ambas, como do exposto se patenteia, governo que por muitos se exerce; à aristocracia a oligarquia, exercendo-se ambas por poucos; e o reino à tirania, exercendo-os ambos um só. Que, porém, é o reino o melhor regime, mostrou-se antes. Se, pois, ao ótimo se opõe o péssimo, força é que a tirania seja o pior.

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Capítulo VI

De como no governo de muitos sucede mais frequentemente o domínio da tirania, do que no governo de um só; e, por isso, o governo de um só é melhor

15. Como, todavia, entre dois, dos quais, tanto de um como de outro, está iminente o perigo, faz-se mister escolher; cumpre que, com muito mais preferência, se escolha aquele do qual deriva menor mal. Ora, da monarquia que em tirania se converte, segue-se menor mal do que do governo de muitos nobres, ao se corromper. Verdadeiramente, a dissensão que, o mais das vezes, deriva do governo de muitos, contraria o bem da paz, que é o princípio na multidão social, bem esse que pela tirania não se perde, mas somente se impedem alguns dos bens dos homens particulares, salvo se há excesso de tirania, que se agrave contra toda a comunidade. Portanto, há de se decidir de preferência pelo governo de um só do que pelo de muitos, se bem que de ambos decorram perigos.

(…)

Perguntas para reflexão

1. Se uma tradição foi fruto da razão humana (em algum momento histórico) é sensato descartar uma tradição sem antes analisar se a razão histórica que originou a tradição era ou não era acertada ou já não mais é acertada?

2. Em muitos países o direito positivo precede os costumes e as tradições como fonte de direito. Quais os riscos decorrentes de um ordenamento jurídico assim estruturado? Quais os riscos de uma inversão de precedência? O que se ganha com uma inversão de precedências?

3. Quais são as normas que compõe o direito dado por Deus (Novo Testamento)?

4. O governo de um só é defendido por Tomás Aquino por ser o que melhor preserva a unidade da cidade. Em que medida esse argumento se sustenta em um país como os Estados Unidos ou o Brasil? Existem outros argumentos que podem justificar essa preferência?

5. Como a justificativa de Tomás de Aquino para resistir à tirania — quando governantes agem contra a lei divina ou natural — pode ser paralela aos movimentos de protesto contemporâneos contra governos corruptos ou opressores em regiões como o Oriente Médio ou a América Latina?

6. Reflita sobre o papel da razão na participação na lei natural, segundo Tomás de Aquino; que implicações isso tem para a educação dos cidadãos em sociedades democráticas, permitindo-lhes discernir entre leis justas e injustas?

7. Como o conceito de Aquino de lei eterna como o plano divino que governa toda a criação influencia os debates contemporâneos sobre se absolutos morais devem fundamentar os tratados internacionais de direitos humanos?

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