III. O estado absoluto como remédio contra a desordem e o medo, por Thomas Hobbes (1588-1679).


Introdução

Thomas Hobbes, filósofo político inglês nascido em 1588 e falecido em 1679, é uma figura central no pensamento político moderno, especialmente conhecido por sua defesa de um estado absoluto como solução para a desordem e o medo inerentes à condição humana. Sua obra-prima, Leviatã (1651), foi escrita durante seu exílio na França, período marcado pela Guerra Civil Inglesa (1642-1651), um conflito entre o rei Carlos I e o Parlamento que resultou na execução do monarca e na ascensão de uma república sob Oliver Cromwell. Este contexto de instabilidade profunda influenciou profundamente sua filosofia, que buscava responder à anarquia e à violência observadas.

Figura 11: Retrato de Thomas Hobbes.

Autor: John Michael Wrigth (1617-1694)

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Thomas_Hobbes_(portrait).jpg

Contexto Histórico e Influências

Hobbes testemunhou de perto os efeitos devastadores da guerra civil, vendo-a como um exemplo do “estado de natureza”, uma condição hipotética onde os seres humanos, sem um poder central, vivem em constante conflito devido à competição por recursos e à ausência de segurança. Ele serviu como tutor e secretário de nobres ingleses, mas, como monarquista, fugiu para a França para evitar perseguições dos parlamentaristas. Durante esse exílio, escreveu Leviatã, um tratado que defende a necessidade de um soberano absoluto para manter a ordem social. Sua experiência foi moldada também por influências científicas, como a filosofia indutiva de Francis Bacon e o método geométrico, que ele aplicou à política, buscando criar uma “ciência da política”.

Ideias Políticas Centrais

As ideias de Hobbes giram em torno de conceitos fundamentais que desafiam visões anteriores, como as de Aristóteles e Tomás de Aquino, que viam o estado como um meio para o bem comum ou a virtude. Em vez disso, Hobbes argumentou que o estado deve ser absoluto, com poder ilimitado, para prevenir o caos. Seus conceitos principais incluem:

Estado de Natureza: Uma condição de igualdade e liberdade absolutas, mas também de constante conflito e insegurança, onde “a vida do homem é solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”, como descrito em Leviatã, Capítulo XIII.

Natureza Humana: Hobbes via os seres humanos como motivados principalmente pelo desejo de autopreservação e pelo medo da morte, acreditando que, sem restrições, são egoístas e competitivos, o que leva à necessidade de um contrato social.

Contrato Social: Um acordo em que os indivíduos cedem seus direitos naturais a um soberano, que então tem o poder de fazer e aplicar leis para manter a paz, como detalhado em Leviatã, Capítulo XVII, onde ele explica que o propósito é desfrutar dos benefícios da união e proteção mútua.

Soberania Absoluta: O soberano deve ter poder ilimitado para garantir que nenhuma facção possa desafiar sua autoridade, prevenindo a volta ao estado de natureza.

Medo como Ferramenta: Hobbes reconheceu que o medo, tanto do soberano quanto da anarquia, é essencial para manter a obediência e a ordem social, uma ideia que reflete sua visão pessimista da humanidade.

O Contrato Social na Pandemia de COVID-19
A pandemia de COVID-19 fornece um exemplo moderno da mentalidade hobbesiana em ação. Durante a crise, muitos governos implementaram medidas rigorosas, como lockdowns, obrigatoriedade de uso de máscaras, vacinação compulsória, e restrições à mobilidade, sob o argumento de proteção à saúde pública. Muitos cidadãos, amedrontados com o vírus, aceitaram limitações significativas em suas liberdades individuais e apoiaram a exigência de que os cidadãos menos receosos fossem obrigados a se submeter a tais limitações, ainda que com danos substanciais não apenas às suas liberdades, mas às suas economias e às suas vidas, de seus filhos e outros parentes.
De uma forma geral, incutir medo, justificável ou não, na população tem sido uma estratégia frequente de governos autoritários para subirem um degrau na escada do poder.

Conexão com o Diagrama das Mentalidades Políticas

Hobbes se alinha claramente com os “Estatistas Radicais”, que defendem um controle estatal forte e centralizado. Sua ênfase na soberania absoluta e na supressão da dissidência o coloca em oposição direta aos “Liberais Clássicos”, que valorizam as liberdades individuais e um governo limitado. No entanto, suas ideias também influenciam outras mentalidades autoritárias, como os “Conservadores Autoritários”, que priorizam ordem e estabilidade, e os “Esquerdistas Radicais”, com sua pretensão de impor a ordem social que aspiram.

Impacto Histórico e Relevância Moderna

As ideias de Hobbes tiveram um impacto profundo no pensamento político moderno, tendo servido de justificativa para estados autoritários com poder centralizado.

Conclusão

Thomas Hobbes ofereceu uma visão poderosa e influente da necessidade de um estado forte para prevenir a anarquia e proteger os cidadãos. Sua teoria do contrato social, embora controversa, continua a moldar o pensamento político e a fornecer insights sobre os desafios de governar sociedades complexas. No diagrama das mentalidades políticas, ele se posiciona como um defensor da ordem estatal, desafiando os liberais clássicos e influenciando tanto conservadores autoritários quanto esquerdistas radicais.

Textos selecionados

Thomas Hobbes. Leviatã ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Da Silva. São Paulo:  Martins Fontes: 2003.

CAP. XIII. Da CONDIÇÃO NATURAL da Humanidade relativamente à sua Felicidade e Miséria.

(…)

De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defenderem-nos; e os terceiros, por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, amigos, nação, profissão ou ao seu nome.

Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-Ios todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a GUERRA não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto, a noção de tempo deve ser levada em conta na natureza da guerra, do mesmo modo que na natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover durante vários dias seguidos, também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de PAZ.

Portanto, tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Numa tal condição não há lugar para o trabalho, pois o seu fruto é incerto; conseqüentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta.

(…)

Seja como for, é fácil conceber qual era o gênero de vida quando não havia poder comum a temer, pelo gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair numa guerra civil.

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os individuos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, em todos os tempos os reis e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa da sua independência, vivem em constante rivalidade e na condição e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos nos outros; isto é, os seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras dos seus reinos, e constantemente com espiões no território dos seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como desse modo protegem o trabalho dos seus súditos, disso não se segue como conseqüência a desgraça associada à liberdade dos individuos isolados.

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é  conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de certo e de errado, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que os seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de o conservar. É pois nesta miserável condi ção que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza, embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões e em parte na sua razão.

As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de as conseguir por meio do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a um acordo. Essas normas são aquelas a que em outras situações se chamam leis da natureza, das quais falarei mais particularmente nos dois capítulos seguintes.

CAP. XIV. Da primeira e segunda LEIS NATURAIS e dos CONTRATOS.

O DIREITO DE NATUREZA, a que os autores geralmente chamam Jus Naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios mais adequados a esse fim.

Por LIBERDADE entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que o seu julgamento e razão lhe ditarem.

Uma LEI DE NATUREZA (Lex Naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-Io dos meios necessários para a preservar, ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para a preservar. Porque, embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir Jus e Lex, o direito e a lei, é necessário distingui-Ios um do outro. Pois o DIREITO consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a LEI determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma questão.

E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado pela sua própria razão, e nada havendo de que possa lançar mão que não lhe ajude na preservação da sua vida contra os seus inimigos, segue-se que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, até mesmo aos corpos uns dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito natural de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Conseqüentemente, é um preceito ou regra geral da razão: Que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a primeira e fundamental lei de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-Ia.

A segunda encerra a súmula do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos. Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que se esforcem para conseguir a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver o seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não resignarem ao seu direito, assim como ele próprio, não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris.

(…)

Perguntas para Reflexão

1. Em que medida a visão de Hobbes sobre o estado de natureza reflete a realidade humana? Há evidências históricas ou contemporâneas que apoiem ou refutem sua descrição?

2. Hobbes argumentou que a soberania deve ser absoluta para evitar a anarquia. Essa visão é compatível com os sistemas democráticos modernos, onde o poder é distribuído e há freios e contrapesos?

3. Como as ideias de Hobbes sobre a natureza humana influenciam as políticas públicas contemporâneas?

4. No diagrama de mentalidades políticas, por que as ideias de Hobbes são associadas a estatistas radicais? Como elas se relacionam com outras mentalidades, como conservadores autoritários ou liberais clássicos?

5. Como a descrição de Hobbes do estado de natureza como um reino de medo e conflito constantes, onde a vida é “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”, ilustra o potencial colapso da sociedade sem uma autoridade central forte, e que paralelos podem ser traçados com Estados ou regiões falidas contemporâneas que vivenciam conflitos civis?

6. Discuta o contrato social na filosofia de Hobbes, em que os indivíduos renunciam aos seus direitos naturais a um soberano absoluto em troca de segurança; Como esse conceito poderia criticar ou apoiar os debates atuais sobre leis de segurança nacional que limitam as liberdades civis em nações democráticas?

7. Considerando a referência no quadro às medidas da COVID-19 como um exemplo hobbesiano de conformidade motivada pelo medo, que reflexões surgem sobre as implicações éticas de governos que usam emergências de saúde pública para impor lockdowns ou mandatos no mundo pós-pandêmico de hoje?

8. Como a justificativa de Hobbes para um Estado absoluto para remediar a desordem e o medo contrasta com pensadores como Tomás de Aquino, que priorizavam o bem comum, e como essa tensão poderia informar as discussões contemporâneas sobre o equilíbrio entre liberdades individuais e segurança coletiva em políticas como o controle de armas?

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