II. As leis devem ser adequadas às pessoas e às suas circunstâncias, à natureza e ao princípio de cada governo, por Montesquieu (1689-1755).

Introdução

Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu, foi um filósofo e jurista francês cuja obra seminal, O Espírito das Leis (1748), remodelou o pensamento político ao enfatizar que as leis devem ser adaptadas às características únicas de uma sociedade — seu povo, cultura, geografia e forma de governo. Escrevendo durante o Iluminismo, um período de efervescência intelectual que desafiava as monarquias absolutistas, Montesquieu defendeu um governo estruturado para preservar a liberdade por meio da separação de poderes e da adaptação das leis a contextos específicos. No diagrama circular das mentalidades políticas, Montesquieu é um pilar da perspectiva liberal clássica, defendendo a liberdade individual e a governança equilibrada, ao mesmo tempo em que se opunha à autoridade irrestrita de radicais estatistas e autoritários conservadores. Suas ideias influenciaram profundamente o desenho constitucional moderno, notadamente a Constituição dos Estados Unidos, e continuam a ressoar em debates sobre governança e liberdade.

Ideias Centrais de Montesquieu: O Espírito das Leis

Em O Espírito das Leis, Montesquieu argumenta que uma governança eficaz requer leis que reflitam as condições específicas de uma sociedade. Ele escreve:

“As leis devem ser tão apropriadas às pessoas para as quais são feitas que é muito improvável que as leis de uma nação possam servir a outra” (O Espírito das Leis, Livro I, Capítulo 3).

Este princípio reforça a crença de Montesquieu de que as leis não são universais, mas devem levar em conta o clima, a geografia, a religião, os costumes e as condições econômicas de uma sociedade. Por exemplo, ele sugere que climas mais quentes podem promover comportamentos sociais diferentes dos temperados, influenciando os tipos de leis necessárias. Da mesma forma, ele argumenta que o “espírito” ou princípio de cada governo — honra nas monarquias, virtude nas repúblicas, medo nos despotismos — molda as leis que o sustentam.

Figura 13. Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu

Autor: Jacques-Antoine Dassier (1715-1759)

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Montesquieu_1.png

A contribuição mais duradoura de Montesquieu, no entanto, é sua doutrina da separação de poderes. Ele propôs que as funções governamentais fossem divididas em três poderes — legislativo, executivo e judiciário — para impedir que qualquer um deles dominasse e para salvaguardar a liberdade. Ele escreve:

“Quando os poderes legislativo e executivo estão unidos na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, não pode haver liberdade… Novamente, não há liberdade se o poder judiciário não estiver separado do legislativo e do executivo” (O Espírito das Leis, Livro XI, Capítulo 6).

Essa separação, combinada com freios e contrapesos, garante que o poder permaneça difuso, prevenindo a tirania. A admiração de Montesquieu pela constituição inglesa, particularmente após a Revolução Gloriosa, inspirou esse modelo, pois ele via o sistema equilibrado da Inglaterra como um baluarte contra o absolutismo.

Os tribunais não podem exceder seus poderes
A Juíza Amy Coney BARRETT (1972), da Suprema Corte dos Estados Unidos, proferiu a seguinte decisão em nome da Corte, em caso envolvendo o Presidente TRUMP, sobre pedido de suspensão parcial Nº 24A884 (Argumentado em 15 de maio de 2025 — Decidido em 27 de junho de 2025):
“Os Estados Unidos entraram com três pedidos de emergência contestando o alcance da autoridade de um tribunal federal para proibir funcionários do Governo de executar uma ordem executiva. Tradicionalmente, os tribunais emitiam liminares proibindo funcionários do Executivo de executar uma lei ou política contestada apenas contra os autores da ação. As liminares que temos diante de nós hoje refletem um desenvolvimento mais recente: tribunais distritais afirmando o poder de proibir a execução de uma lei ou política contra qualquer pessoa. Essas liminares — conhecidas como “liminares universais” — provavelmente excedem a autoridade equitativa que o Congresso concedeu aos tribunais federais. Portanto, deferimos os pedidos do Governo para suspender parcialmente as liminares abaixo.
(…)

Alguns dizem que a liminar universal “dá ao Judiciário uma ferramenta poderosa para controlar o Poder Executivo”. (…). Mas os tribunais federais não exercem supervisão geral do Poder Executivo; eles resolvem casos e controvérsias consistentes com a autoridade que o Congresso lhes conferiu. Quando um tribunal conclui que o Poder Executivo agiu ilegalmente, a resposta não é que o tribunal também exceda seu poder.
Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/24pdf/24a884_8n59.pdf?ftag=MSF0951a18

A Abordagem Contextual de Montesquieu à Liberdade

Ao contrário de John Locke, que fundamentou a liberdade em direitos naturais universais, Montesquieu enfatizou a liberdade como um resultado prático de instituições bem projetadas e adaptadas a sociedades específicas. Ele definiu a liberdade como “o direito de fazer tudo o que as leis permitem” (O Espírito das Leis, Livro XI, Capítulo 3), sugerindo que a liberdade surge da segurança sob leis justas, não do individualismo desenfreado. Essa abordagem pragmática distingue Montesquieu do liberalismo clássico, pois ele equilibrou a liberdade individual com a necessidade de ordem social, reconhecendo que a liberdade depende do contexto cultural e histórico de uma nação.

Montesquieu também classificou os governos em três tipos — repúblicas, monarquias e despotismos — cada um com princípios e riscos distintos. As repúblicas se baseiam na virtude cívica, mas podem degenerar em anarquia; as monarquias dependem da honra, mas correm o risco de corrupção; os despotismos, movidos pelo medo, suprimem inerentemente a liberdade. Sua análise alerta contra o absolutismo, defendendo uma governança moderada que respeite as condições locais e proteja os direitos individuais.

Outras ideias relevantes de Montesquieu

Dentre outras lições de Montesquieu, destacamos as seguintes:

  • As pessoas ao se aglutinarem em sociedades vislumbram a possibilidade e agem umas para espoliar outras (surgimento das facções), daí a necessidade dos direitos das gentes e político.
  • As leis devem ser adequadas às pessoas e às suas circunstâncias, à natureza e ao princípio de cada governo
  • A criação e a manutenção de uma república (governo de leis) democrática exigem que o povo tenha amor à república, o que deve ser construído e mantido pelo sistema educacional
  • Em uma república, a liberdade só pode consistir no poder de fazer o que devemos querer e em não sermos constrangidos a fazer o que não devemos querer. A liberdade política do sujeito é uma tranqüilidade de espírito que surge da opinião que cada pessoa tem sobre a sua segurança.
  • A liberdade só pode existir em governos moderados, em que um poder seja o freio para outro poder.
  • Para que haja liberdade, os três poderes, executivo, legislativo e judiciário devem estar separados.
  • O poder judiciário, dos três, é o menos perigoso pois é apenas a boca da lei (quando assim, de fato, constituído, isto é, quando possui apenas o poder de julgar).
  • Para que o poder judiciário seja percebido como justo, os juízes devem ser da mesma categoria dos acusados (direito de ser julgado pelos seus pares)

Relação com o Diagrama Circular

No diagrama circular das mentalidades políticas, Montesquieu ocupa firmemente a posição liberal clássica, com sua ênfase na liberdade, no governo limitado e no equilíbrio institucional. Suas ideias se conectam com grupos adjacentes e se opõem a outras:

Esquerdistas Democráticos: O foco de Montesquieu em instituições representativas e liberdade se alinha com os socialistas democráticos que valorizam uma governança responsiva ao povo, embora discordem quanto à intervenção econômica. Suas ideias sobre a adaptação das leis às condições sociais ressoam com as reformas social-democratas que consideram os contextos culturais e econômicos, como o Estado de bem-estar social sueco.

Conservadores Moderados: O respeito de Montesquieu pela tradição e pela mudança gradual, como visto em sua admiração pela evolução da constituição inglesa, se alinha com os conservadores moderados que defendem reformas estáveis ​​e incrementais. Sua abordagem pragmática à governança une valores liberais e conservadores, como visto em sua influência sobre figuras como Edmund Burke, que valorizava instituições equilibradas.

Oposição aos Estatistas Radicais e Conservadores Autoritários: A rejeição de Montesquieu ao despotismo e ao poder centralizado o coloca em oposição direta aos radicais estatistas, como o regime fascista de Mussolini, e aos autoritários conservadores, como a Espanha de Franco, que priorizavam o controle em detrimento da liberdade. Sua doutrina de separação de poderes se opõe explicitamente à concentração de autoridade por eles.

Relevância Moderna

As ideias de Montesquieu permanecem vitais nos debates contemporâneos sobre governança. Sua doutrina de separação de poderes sustenta as democracias modernas, garantindo o controle da autoridade em sistemas como os Estados Unidos e as democracias parlamentares. Sua abordagem contextual às leis é relevante em discussões sobre federalismo, em que as políticas devem levar em conta as diferenças regionais, ou em governança global, em que leis universais frequentemente entram em conflito com as realidades culturais.

Não existe supremacia judicial
Em conhecida fala, Stephen Miller (1985) assessor político e conselheiro de segurança interna do Governo Donald Trump, afirmou que não existe supremacia judicial. Seu entendimento parece inspirado em Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos EUA:
. . . . .A .2a questão de se os juízes são investidos de autoridade exclusiva para decidir sobre a constitucionalidade de uma lei tem sido, até agora, objeto de minha consideração no exercício de funções oficiais. Certamente, não há uma palavra na Constituição que lhes tenha conferido esse poder mais do que aos poderes executivo ou legislativo. Questões de propriedade, caráter e crime, sendo atribuídas aos juízes, por meio de um curso definido de procedimento legal, as leis que envolvem tais questões pertencem, naturalmente, a eles; e como decidem sobre elas em última instância e sem apelação, é claro que decidem por si mesmos. A validade constitucional da lei ou leis que prescrevem a ação executiva, e que devem ser administradas por esse poder em última instância e sem apelação, exige que o executivo decida por si mesmo se, sob a Constituição, elas são válidas ou não. Assim também quanto às leis que regem os procedimentos do legislativo, esse órgão deve julgar por si mesmo a constitucionalidade da lei, igualmente sem apelação ou controle de seus poderes coordenados. E, em geral, o poder que deve agir em última instância e sem apelação sobre qualquer lei é o legítimo expositor da validade da lei, sem ser controlado pelas opiniões das outras autoridades coordenadas. Pode-se dizer que decisões contraditórias podem surgir em tal caso e produzir inconvenientes. Isso é possível e é uma falha necessária em todos os procedimentos humanos. No entanto, a prudência dos funcionários públicos e a autoridade da opinião pública geralmente produzem acomodação.(…) É isso que eu acredito ser sensato. Mas há outra opinião sustentada por alguns homens de tal discernimento e informação que diminui minha confiança na minha própria. Isto é, que somente o legislativo é o expositor exclusivo do sentido da Constituição, em todas as suas partes. E eles alegam, em seu apoio, que este poder tem autoridade para destituir e punir um membro de qualquer um dos outros que atue de forma contrária à sua declaração do sentido da Constituição. Pode-se, de fato, responder que um ato ainda pode ser válido embora a parte seja punida por ele, certa ou errada. No entanto, esta opinião que atribui a exposição exclusiva ao legislativo merece respeito por sua segurança, visto que existe no corpo da nação um controle sobre eles que, se expresso pela rejeição no exercício subsequente de seu direito de voto, alicia a opinião pública contra sua exposição e encoraja um juiz ou executivo, em uma ocasião futura, a aderir à sua opinião anterior. Entre essas duas doutrinas, todos têm o direito de escolher, e não conheço nenhuma terceira que mereça qualquer respeito..
(Fonte: https://founders.archives.gov/documents/Jefferson/03-08-02-0427)

Os princípios de Montesquieu orientam aqueles que buscam uma governança que respeite tanto a liberdade individual quanto a diversidade social, tornando sua obra uma referência para o liberalismo clássico.

Conclusão

O Espírito das Leis, de Montesquieu, oferece uma visão de governança em que as leis são adaptadas às características únicas de um povo e seu governo, garantindo a liberdade por meio da separação de poderes e da sensibilidade contextual. Suas ideias consolidam seu lugar na mentalidade liberal clássica do diagrama circular, unindo valores democráticos e conservadores, ao mesmo tempo em que se opõem ao autoritarismo. Ao defender instituições equilibradas e leis adequadas a sociedades específicas, Montesquieu forneceu uma estrutura que moldou as democracias modernas e continua a informar debates sobre liberdade e governança. Seu legado nos lembra que a liberdade não prospera em mandatos universais, mas em sistemas cuidadosamente projetados para refletir a diversidade humana e proteger os direitos individuais.

Citação-chave

“Liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem, e as leis devem ser formuladas de modo a não permitir muito poder nas mãos de uma única pessoa” (O Espírito das Leis, Livro XI, Capítulo 3).

Textos selecionados

LIVRO PRIMEIRO

Das leis em geral

CAPÍTULO I

Das leis em sua relação com os diversos seres

As leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; e, neste sentido, todos os seres têm suas leis; a Divindade possui suas leis, o mundo material possui suas leis, as inteligências superiores ao homem possuem suas leis, os animais possuem suas leis, o homem possui suas leis.

Aqueles que afirmaram que uma fatalidade cega produziu todos os efeitos que observamos no mundo proferiram um grande absurdo: pois o que poderia ser mais absurdo do que uma fatalidade cega que teria produzido seres inteligentes?

Existe, portanto, uma razão primitiva; e as leis são as relações que se encontram entre ela e os diferentes seres, e as relações destes diferentes seres entre si.

Deus possui uma relação com o universo, como criador e como conservador: as leis segundo as quais criou são aquelas segundo as quais conserva. Ele age segundo estas regras porque as conhece; conhece-as porque as fez, e as fez porque elas possuem uma relação com sua sabedoria e sua potência.

Como observamos que o mundo, formado pelo movimento da matéria e privado de inteligência, ainda subsiste, é necessário que seus movimentos possuam leis invariáveis; e se pudéssemos imaginar um mundo diferente deste ele possuiria regras constantes ou seria destruído.

Assim, a criação, que parece ser um ato arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto a fatalidade dos ateus. Seria absurdo dizer que o Criador poderia, sem estas regras, governar o mundo, já que o mundo não subsistiria sem elas.

(…)

CAPÍTULO II

Das leis da natureza

Antes de todas estas leis, estão nas leis da natureza, assim chamadas porque derivam unicamente constituição de nosso ser. Para bem conhecê-las, deve-se considerar um homem antes do estabelecimento das sociedades. As leis da natureza serão aquelas que receberia em tal estado.

Esta lei que, imprimindo em nós a ideia de um criador, nos leva em sua direção, é a primeira das leis naturais por sua importância, mas não na ordem destas leis. O homem no estado de natureza teria mais a faculdade de conhecer do que conhecimentos. Está claro que suas primeiras idéias não seriam especulativas: pensaria na conservação de seu ser, antes de buscar a origem deste ser. Tal homem sentiria no início apenas sua fraqueza; sua timidez seria extrema: e, se precisássemos sobre este caso de alguma experiência, foram encontrados nas florestas homens selvagens; tudo os faz tremer, tudo os faz fugir.

Neste estado todos se sentem inferiores; no limite, cada um se sente igual aos outros.

Não se procuraria, então, atacar, e a paz seria a primeira lei natural.

O desejo que Hobbes atribui em primeiro lugar aos homens de subjugarem-se uns aos outros não é razoável. A idéia de império e de dominação é tão composta, e depende de tantas outras idéias, que não seria ela que o homem teria em primeiro lugar.

Hobbes pergunta: “por que, se não se encontram naturalmente em estado de guerra, os homens andam sempre armados? E por que têm chaves para fechar suas casas?” Mas não percebe que está atribuindo aos homens, antes do, estabelecimento das sociedades, aquilo que só pode acontecer após este estabelecimento, que fará com que encontrem motivos para atacarem-se e defenderem-se.

Ao sentimento de sua fraqueza, o homem acrescentaria o sentimento de suas necessidades.

Assim, outra lei natural seria aquela que lhe inspiraria a procura da alimentação. Eu disse que o temor levaria os homens a fugirem uns dos outros: mas os sinais de um temor recíproco encorajariam-nos a os aproximarem. Aliás, eles seriam levados a isto pelo prazer que um animal experimenta ao sentir a aproximação de outro animal de sua espécie.

Além disso, o encanto que os dois sexos inspiram um ao outro devido a sua diferença aumentaria este prazer; e apelo natural que sempre fazem um ao outro seria uma terceira lei.

Além do sentimento que os homens têm em primeiro lugar, ainda conseguem possuir conhecimentos; assim, possuem um novo motivo para se unirem; e o desejo de viver em sociedade é uma quarta lei natural.

CAPÍTULO III

Das leis positivas

Assim que os homens estão em sociedade, perdem o sentimento de sua fraqueza; a igualdade que existia entre eles finda, e o estado de guerra começa.

Cada sociedade particular começa a sentir sua força; o que produz um estado de guerra de nação a nação. Os particulares, em cada sociedade, começam a sentir sua força; procuram colocar a seu favor as principais vantagens desta sociedade; o que cria entre eles um estado de guerra.

Estes dois tipos de estado de guerra fazem com que se estabeleçam leis entre os homens.

Considerados como habitantes de um planeta tão grande, a ponto de ser necessária a existência de diferentes povos, existem leis na relação que estes povos possuem entre si; é o DIREITO DAS GENTES. Considerados como membros de uma sociedade que deve ser mantida, existem leis na relação entre aqueles que governam e aqueles que são governados; é o DIREITO POLÍTICO. Elas existem ainda na relação que todos os cidadãos possuem entre si; e é o DIREITO CIVIL.

O direito das gentes está naturalmente baseado neste princípio: que as diversas nações devem fazer umas às outras, na paz, o maior bem e, na guerra, o menor mal possível, sem prejudicar seus verdadeiros interesses.

O objetivo da guerra é a vitória; o da vitória, a conquista; o da conquista, a conservação. Deste princípio e do anterior devem derivar todas as leis que formam o direito das gentes.

(…)

LIVRO 3.

Dos princípios dos três tipos de governo

1. Diferença entre a natureza e o princípio do governo

Tendo examinado as leis em relação à natureza de cada governo, devemos investigar aquelas que se relacionam com seu princípio.

Há esta diferença entre a natureza e o princípio do governo: o primeiro é aquilo pelo qual ele é constituído, o segundo aquilo pelo qual ele é levado a agir. Um é sua estrutura particular, e o outro, as paixões humanas que o põem em movimento.

Ora, as leis não devem se relacionar menos com o princípio do que com a natureza de cada governo. Devemos, portanto, investigar este princípio, que será o assunto deste terceiro livro.

2. Do princípio dos diferentes governos.

Já observei que é da natureza de um governo republicano que o corpo coletivo do povo, ou famílias específicas, possuam o poder supremo; de uma monarquia, que o príncipe tenha esse poder, mas na execução dele seja dirigido por leis estabelecidas; de um governo despótico, que uma única pessoa governe de acordo com sua própria vontade e capricho. Isso me permite descobrir seus três princípios, que daí derivam naturalmente. Começarei com um governo republicano e, em particular, com o da democracia.

3. Do princípio da democracia

Não é necessária uma grande dose de probidade para sustentar um governo monárquico ou despótico. A força das leis em um e o braço do príncipe no outro são suficientes para dirigir e manter o todo. Mas, em um Estado popular, uma fonte a mais é necessária, a saber, a virtude.

O que aqui apresentei é confirmado pelo testemunho unânime dos historiadores e é extremamente compatível com a natureza das coisas. Pois é claro que em uma monarquia, onde aquele que comanda a execução das leis geralmente se considera superior a elas, há menos necessidade de virtude do que em um governo popular, onde a pessoa encarregada da execução das leis tem consciência de estar sujeita à sua direção.

(…)

Quando a virtude é banida, a ambição invade a mente daqueles que estão dispostos a recebê-la, e a avareza se apodera de toda a comunidade. Os objetos de seus desejos mudam; aquilo de que antes gostavam tornou-se indiferente; eram livres enquanto estavam sob a restrição das leis, mas agora gostariam de ser livres para agir contra a lei; e como cada cidadão é como um escravo que fugiu de seu senhor, aquilo que era uma máxima de equidade ele chama de rigor; aquilo que era uma regra de ação ele denomina restrição; e à precaução ele dá o nome de medo. A frugalidade, e não a sede de ganho, agora passa por avareza. Antigamente, a riqueza dos indivíduos constituía o tesouro público; mas agora este se tornou o patrimônio de pessoas privadas. Os membros da comunidade se revoltam contra os despojos públicos, e sua força é apenas o poder de poucos e a liberdade de muitos.

(…)

LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO

Das leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição

(…)

CAPÍTULO II

Diversos significados atribuídos à palavra liberdade

Não existe palavra que tenha recebido tantos significados e tenha marcado os espíritos de tantas maneiras quanto a palavra liberdade. Uns a tomaram como a facilidade de depor aquele a quem deram um poder tirânico; outros, como a faculdade de eleger a quem devem obedecer; outros, como o direito de estarem armados e de poderem exercer a violência; estes, como o privilégio de só serem governados por um homem de sua nação, ou por suas próprias leis. Certo povo tomou por muito tempo a liberdade como sendo o costume de possuir uma longa barbai. Estes ligaram este nome a uma forma de governo e excluíram as outras. Aqueles que experimentaram o governo republicano colocaram-na neste governo; aqueles que gozaram do governo monárquico puseram na na monarquia. Enfim, cada um chamou liberdade ao governo conforme a seus costumes ou a suas inclinações; e como numa república não se têm diante dos olhos, e de maneira tão presente, os instrumentos dos males dos quais se queixa, e como até as leis parecem falar mais e os executores da lei falar menos, ela é normalmente situada nas repúblicas e excluída das monarquias. Enfim, como nas democracias o povo parece mais ou menos fazer o que quer, situou-se a liberdade nestes tipos de governo e confundiu-se o poder do povo com a liberdade do povo.

CAPÍTULO III

Que é a liberdade

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer.

Deve-se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este poder.

CAPÍTULO IV

Continuação do mesmo assunto

A democracia e a aristocracia não são Estados livres por natureza. A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem, diria! Até a virtude precisa de limites.

Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite.

(…)

CAPÍTULO VI

Da constituição da Inglaterra

Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que emendem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil.

Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.

A liberdade política, em um cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.

(…)

O poder de julgar não deve ser dado a um senado permanente, mas deve ser exercido por pessoas tiradas do seio do povo em certos momentos do ano, da maneira prescrita pela lei, para formar um tribunal que só dure o tempo que a necessidade requer.

Desta forma, o poder de julgar, tão terrível entre os homens, como não está ligado nem a certo estado, nem a certa profissão, toma-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não se têm continuamente juízes sob os olhos; e teme-se a magistratura, e não os magistrados.

É até mesmo necessário que, nas grandes acusações, o criminoso, de acordo com a lei, escolha seus juízes; ou pelo menos que possa recusar um número tão grande deles que aqueles que sobrarem sejam tidos como de sua escolha.

Os dois outros poderes poderiam ser dados antes a magistrados ou a corpos permanentes, porque não são exercidos sobre nenhum particular; sendo um apenas a vontade geral do Estado, e o outro a execução desta vontade geral.

Mas, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente os compromissos que ali assumimos.

É até mesmo necessário que os juízes sejam da mesma condição do acusado, ou seus pares, para que não possa pensar que caiu nas mãos de pessoas inclinadas a lhe fazerem violência.

(…)

Questões para Reflexão:

  • 1. Como a separação de poderes de Montesquieu se aplica à competência do Supremo Tribunal Federal (brasileiro) de investigar e julgar certas autoridades?
  • 2. Como a separação de poderes de Montesquieu se aplica aos desafios democráticos modernos, como o ativismo judicial?
  • 3. Como você avalia um corpo judicial composto de juízes concursados vitalícios em oposição à prescrição de Montesquieu de juízes eleitos pelo povo (pelas pessoas da região de atuação do juiz) por mandato temporário.
  • 4. De que maneiras a abordagem contextual de Montesquieu às leis pode informar políticas que abordam a diversidade cultural em um país? Onde você situaria o pensamento de Montesquieu em relação ao federalismo?
  • 5. Em  painel da COP 28, em Dubai, o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal declarou:
    “Tribunais Constitucionais desempenham três tipos de papéis: (i) contramajoritário, quando invalidam atos dos outros dois Poderes que contrariem a Constituição; (ii) representativo, quando atendem demandas sociais, protegidas pela Constituição, e que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário; e (iii) iluminista. Esse papel iluminista pode ser assim definido: em certas situações, raras mas importantes, cabe às Cortes Supremas, em nome da Constituição, de tratados internacionais e de valores universais de justiça, sanar omissões graves, que afetem os direitos humanos. Isso se dá em casos de inércia dos governos e mesmo de desmobilização da sociedade. Em muitas partes do mundo, foi assim com a segregação racial, os direitos das mulheres e os direitos da comunidade LGBTQIAPN+”.
    Como as ideias “iluministas” do Ministro do STF se coadunam ou se contrapõe às ideais de Montesquieu? Como se coadunam ou se contrapõe ao defendido pela Suprema Corte Americana no processo mencionado no quadro “Os tribunais não podem exceder seus poderes”. Como se coadunam ou se contrapõe às ideais de Stephen Miller e de Thomas Jefferson de ausência de supremacia do Poder Judiciário?

1. Como a separação de poderes de Montesquieu se aplica à competência do Supremo Tribunal Federal para investigar e julgar determinadas autoridades?

2. Como a separação de poderes de Montesquieu se aplica a desafios democráticos modernos, como o ativismo judicial?

3. Como você avalia um corpo judicial composto por juízes titulares, com mandato vitalício, em oposição à prescrição de Montesquieu de juízes eleitos pelo povo (pela população da região de atuação do juiz) para mandatos temporários?

4. De que maneiras a abordagem contextual de Montesquieu ao direito pode informar políticas que abordem a diversidade cultural em um país? Onde você situaria o pensamento de Montesquieu em relação ao federalismo?

5. Em painel na COP 28, em Dubai, o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, declarou:
“Os Tribunais Constitucionais desempenham três tipos de papéis: (i) contramajoritário, quando invalidam atos dos outros dois poderes que contrariam a Constituição; (ii) representativo, quando atendem a demandas sociais, protegidas pela Constituição, que não foram atendidas pelo processo político majoritário; e (iii) iluminista. Esse papel iluminista pode ser definido da seguinte forma: em certas situações raras, mas importantes, cabe aos Tribunais Supremos, em nome da Constituição, dos tratados internacionais e dos valores universais de justiça, sanar omissões graves que afetam os direitos humanos. Isso ocorre em casos de inércia governamental e até mesmo de desmobilização social. Em muitas partes do mundo, foi o caso da segregação racial, dos direitos das mulheres e dos direitos da comunidade LGBTQIA+.”
Como as ideias “iluministas” do Ministro do Supremo Tribunal Federal se alinham ou contradizem as de Montesquieu? Como elas concordam ou contradizem a defesa da Suprema Corte dos EUA no caso mencionado no quadro “Tribunais Não Podem Exceder Seus Poderes?”. Como elas concordam ou contradizem as ideias de Stephen Miller e Thomas Jefferson sobre a ausência de supremacia judicial?

6. Como a afirmação de Montesquieu de que as leis devem ser adaptadas às pessoas, ao clima e aos costumes específicos de uma sociedade desafia a aplicação de padrões universais de direitos humanos no direito internacional contemporâneo, como os impostos pelas Nações Unidas?

7. De que forma a visão de Montesquieu de que a liberdade política surge de uma “tranquilidade de espírito” baseada na crítica à segurança percebida se assemelha aos Estados modernos de vigilância, onde os governos usam a tecnologia para monitorar os cidadãos sob o pretexto de proteção?

8. Considerando a referência no quadro ao argumento de Stephen Miller contra a supremacia judicial, como isso se alinha ou diverge dos limites de Montesquieu ao poder judicial e quais riscos isso representa para os controles constitucionais em conflitos políticos em andamento nos EUA?

Leave a comment