I.I. Saint Simon (1760-1825), tecnocracia, cientificismo e o novo cristianismo.

Introdução

Henri de Saint-Simon (1760-1825) é reconhecido como uma figura central no desenvolvimento do socialismo utópico, um movimento intelectual do início do século XIX que buscava imaginar sociedades ideais. Nascido em uma família aristocrática francesa, sua vida foi marcada por experiências significativas, como sua participação na Revolução Americana e períodos de pobreza extrema, incluindo uma tentativa de suicídio em 1823. Essas vivências moldaram sua visão crítica das estruturas sociais e econômicas, levando-o a propor uma nova ordem social detalhada em obras como Le Nouveau Christianisme (1825).

Figura 18: Retrato de Claude-Henri de Rouvroy comte de Saint-Simon.

Autor: Hippolyte Ravergie (1815- ?)

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Portrait_de_Claude-Henri_de_Rouvroy_comte_de_Saint-Simon.jpg

Contexto Biográfico e Histórico

Saint-Simon nasceu em Paris em 17 de outubro de 1760, em uma família aristocrática. Sua educação foi irregular, e aos 17 anos entrou para o serviço militar, participando da Revolução Americana como capitão de artilharia em Yorktown em 1781. Durante a Revolução Francesa, ele permaneceu na França, adquirindo terras nacionalizadas, mas enfrentou dificuldades financeiras posteriormente, o que parece ter influenciado sua crítica às elites ociosas. Sua tentativa de suicídio em 1823 reflete os desafios pessoais que enfrentou, mas suas ideias continuaram a ganhar tração, especialmente após sua morte em 19 de maio de 1825.

Visão de uma Sociedade Industrial

Saint-Simon é frequentemente creditado como o primeiro a prever a industrialização global. Ele ingenuamente acreditava que a ciência e a tecnologia poderiam resolver a maioria dos problemas humanos, propondo uma sociedade organizada em torno do trabalho produtivo. Em oposição ao feudalismo e ao militarismo, ele defendia uma tecnocracia formada por industriais, cientistas e engenheiros liderando e assumindo o papel que a Igreja Católica Romana teve na Idade Média. Sua visão incluía uma distinção clara entre:

Classe industrial: Todos os envolvidos em trabalho produtivo, como empresários, gestores, cientistas, banqueiros e trabalhadores manuais, que contribuíam para o progresso social.

Classe ociosa: Indivíduos fisicamente aptos que preferiam uma vida parasitária, sem contribuir para a economia ou a sociedade.

Essa divisão reflete sua crença de que a sociedade deveria ser organizada para maximizar a produtividade, com os mais capazes no comando.

Elite Tecnocratizada e Meritocracia

Um dos aspectos centrais de seu pensamento era a meritocracia, onde os indivíduos seriam promovidos com base em suas habilidades, não em seu nascimento. Ele propôs que cientistas e engenheiros dirigissem a sociedade, refletindo uma visão elitista, tecnocrática, sem adequada compreensão da natureza humana (e como os interesses pessoais e de grupos moldam a ação humana) ou do que é ciência e seus limites.

O “Novo Cristianismo” e sua Integração com a Política

Em Le Nouveau Christianisme, Saint-Simon propõe uma reformulação do cristianismo, buscando eliminar seus elementos metafísicos (como a crença em Deus ou na vida após a morte) e transformando-o em um sistema voltado para o redistributivismo social. Ele escreve: “A religião deve dirigir a sociedade para o grande fim da mais rápida melhoria possível da condição da classe mais pobre” (Saint-Simon, 1825).

Em uma visão progressista, a nova Igreja mobilizaria cientistas e industriais, unindo poder espiritual e temporal para combater o que entende como os vícios da sociedade: egoísmo e ociosidade.

Hayek e Saint-Simon
Friedrich August von Hayek (1899-1992), prêmio Nobel de Economia (1974) em seu livro “A contra-revolução da ciência” faz, entre outras, a seguinte análise do pensamento de Saint-Simon:
§ 1. Dificilmente se pode dizer que sua formação e experiência iniciais qualificaram o conde Henri de Saint-Simon para o papel de reformador científico. (…)
(…)
§ 2. A visita à Suíça foi também a ocasião da primeira publicação de Saint-Simon. Em 1803, surgiram em Genebra as ‘Lettres d’un habitant de Geneve a ses contemporains’, um pequeno tratado no qual o culto voltairiano a Newton era revivido de forma fantasticamente exagerada. Começa propondo que seja aberta uma subscrição diante do túmulo de Newton para financiar o projeto de um grande “Conselho de Newton”, para o qual cada subscritor terá o direito de nomear três matemáticos, três físicos, três químicos, três fisiologistas, três literatos, três pintores e três músicos. Os vinte e um acadêmicos e artistas assim eleitos por toda a humanidade, e presididos pelo matemático que receber o maior número de votos, deverão tornar-se, em sua capacidade coletiva, os representantes de Deus na Terra, que privariam o Papa, os cardeais, os bispos e os padres de seus ofícios por não compreenderem a ciência divina que Deus lhes confiou e que, algum dia, transformará a Terra novamente em um paraíso. Nas divisões e seções em que o supremo Concílio de Newton dividirá o mundo, serão criados Concílios locais de Newton semelhantes, que terão que organizar o culto, a pesquisa e a instrução dentro e ao redor dos templos de Newton, que serão construídos em todos os lugares.
Por que essa nova “organização social”, como Saint-Simon a chama pela primeira vez em um manuscrito inédito do mesmo período? Porque ainda somos governados por pessoas que não compreendem as leis gerais que regem o universo. “É necessário que os fisiologistas expulsem de sua companhia os filósofos, moralistas e metafísicos, assim como os astrônomos expulsaram os astrólogos e os químicos expulsaram os alquimistas.” Os fisiologistas são competentes em primeira instância porque “somos corpos organizados; e é considerando nossas relações sociais como fenômenos fisiológicos que concebi o projeto que apresento a vocês.”
Mas os próprios fisiologistas ainda não são suficientemente científicos. Eles ainda precisam descobrir como sua ciência pode alcançar a perfeição da astronomia, baseando-se na única lei à qual Deus submeteu o universo, a lei da gravitação universal. Será tarefa do Concílio de Newton, exercendo seu poder espiritual, fazer as pessoas compreenderem essa lei. Suas tarefas, no entanto, vão muito além disso. Não terá apenas que reivindicar os direitos dos homens de gênio, dos cientistas, dos artistas e de todas as pessoas com visões liberais; também terá que reconciliar a segunda classe de pessoas, os proprietários, e a terceira, as pessoas sem propriedade, a quem Saint-Simon se dirige especialmente como seus amigos e a quem exorta a aceitar esta proposta, que é a única maneira de impedir aquela “luta que, pela natureza das coisas, necessariamente sempre existe entre” as duas classes.
Tudo isso é revelado a Saint-Simon pelo próprio Senhor, que anuncia ao Seu profeta que colocou Newton ao Seu lado e lhe confiou a iluminação dos habitantes de todos os planetas. A instrução culmina na famosa passagem da qual brota grande parte da doutrina saint-simoniana posterior: “Todos os homens trabalharão; eles se considerarão operários ligados a uma oficina cujos esforços serão direcionados para guiar a inteligência humana de acordo com a minha divina previsão. O supremo Conselho de Newton dirigirá suas obras.” Saint-Simon não tem escrúpulos quanto aos meios que serão empregados para fazer cumprir as instruções de seu órgão central de planejamento: “Quem não obedecer às ordens será tratado pelos outros como um quadrúpede.”
Ao condensar, tivemos que tentar trazer alguma ordem à confusão incoerente e confusa de ideias que este primeiro panfleto de Saint-Simon representa. É a efusão de um visionário megalomaníaco que brota ideias mal digeridas, que o tempo todo tenta atrair a atenção do mundo para seu gênio não reconhecido e para a necessidade de financiar suas obras, e que não se esquece de prover para si, como fundador da nova religião, grande poder e a presidência vitalícia de todos os Conselhos.

Visões Econômicas e Intervenção Estatal

Saint-Simon defendia uma economia de mercado com mínima intervenção estatal, reduzindo impostos e militarismo. O Estado deveria facilitar a organização industrial, promovendo a eficiência da classe industrial sem controlá-la diretamente.

Influência e Legado

As ideias de Saint-Simon tiveram um impacto significativo em pensadores e movimentos posteriores de esquerda. Sua visão tecnocrática de colocar a direção da sociedade nas mãos de “especialistas” ainda ecoam no pensamento burocrático totalitário de parte da esquerda.

Seus ataques à religião, tentando transformá-la em um instrumento político a favor do redistributivismo influenciaram o pensamento esquerdista radical e até mesmo correntes dentro da Igreja Católica, como é o caso dos marxistas da Teologia da Libertação.

Uma característica da mentalidade progressista é uma visão simplificada de mundo que vê as instituições sociais como moldáveis ao seu bel prazer, sem atentar para a existências de trade-offs (as instituições humanas são falíveis e imperfeitas – as escolhas são sempre mandatos de otimização, que devem considerar que existem ganhos e perdas) e consequências não intencionais (raramente se sabe ex ante todas as consequências das mudanças propostas). Saint-Simon pode ser considerado um dos primeiros expoentes dessa mentalidade.

Tabela Resumo: Aspectos Centrais das Ideias de Saint-Simon

AspectoDescrição
IndustrialismoPrevisão da industrialização, sociedade liderada por cientistas e industriais
Meritocracia  Hierarquia baseada em mérito, com cientistas e engenheiros no comando
Novo CristianismoReligião renovada, desprovida dos aspectos metafísicos, unindo política e social, focada no bem-estar dos pobres
Classe Industrial vs. OciosaProdutivos (cientistas, trabalhadores) vs. parasitários (não contribuintes)
EconomiaMercado com intervenção mínima, redução de militarismo e impostos
InfluênciaImpacto em Comte, Marx, saint-simonianos, e movimentos sociais

Conexão com o Diagrama de Mentalidades Políticas

Claude-Henri de Saint-Simon é classificado como Socialista (esquerdista radical) no Diagrama Circular de Mentalidades Políticas Ocidentais, posicionado próximo à fronteira entre Socialistas e Social-Democratas (esquerdistas moderados). Sua visão utópica de uma sociedade tecnocrática e cooperativa alinha-se aos princípios socialistas (esquerdismo radical) de igualdade coletiva e economias planejadas, enquanto sua governança meritocrática, a preservação da propriedade privada e as reformas progressistas ecoam elementos Social-Democratas e Liberais Modernos, colocando-o ligeiramente mais próximo da Social-Democracia.

Conclusão

As ideias socialistas utópicas de Henri de Saint-Simon representam uma tentativa de destruir elementos centrais da sociedade existente e criar uma nova sociedade imaginária baseada em um tecnicismo pseudo-científico ligando sua religião desprovida de Deus e a política. Ainda hoje, a mentalidade e as propostas messiânicas de Saint-Simon continuam a influenciar pensadores esquerdistas radicais que buscam soluções idealistas para problemas sociais, desconsiderando as complexidades práticas dessas soluções ou suas consequências não intencionais.

Textos selecionados

Claude-Henri Saint-Simon. O Novo Cristianismo Diálogos entre um Conservador e um Inovador (1825)

(…)

RELIGIÕES.

O Novo Cristianismo será composto por partidos muito semelhantes aos que atualmente compõem as diversas associações heréticas existentes na Europa e na América.

O Novo Cristianismo, assim como as associações heréticas, terá sua moral, seu culto e seu dogma; terá seu clero, e seu clero terá seus líderes. Mas, apesar dessa semelhança de organização, o Novo Cristianismo será expurgado de todas as heresias existentes. A doutrina da moralidade será considerada pelos Novos Cristãos como a mais importante. Culto e dogma serão considerados por eles apenas como acessórios, tendo como objetivo principal fixar na moralidade a atenção dos fiéis de todas as classes.

No Novo Cristianismo, toda moralidade será deduzida diretamente deste princípio: “Os homens devem tratar uns aos outros como irmãos”. E este princípio, que pertence ao Cristianismo primitivo, experimentará uma transfiguração; após a qual, será apresentado como constituindo o grande objetivo de todo o trabalho religioso.

Este princípio regenerado será apresentado da seguinte maneira: “A religião deve direcionar a sociedade para o grande objetivo da melhoria mais rápida possível da condição da classe mais pobre.”

Aqueles que devem lançar os alicerces do Novo Cristianismo e se constituir como líderes da nova igreja são os mais qualificados para contribuir, com seus trabalhos, para aumentar o bem-estar dos pobres. Os deveres do clero serão reduzidos ao ensino da doutrina do Novo Cristianismo, em cujo aperfeiçoamento os líderes da igreja trabalharão incessantemente.

Tal é, em poucas palavras, o caráter que, nas circunstâncias atuais, o verdadeiro cristianismo deve desenvolver. Prosseguimos agora comparando essa ideia de instituição religiosa com as religiões que existem na Europa e na América: dessa comparação, facilmente obteremos uma prova de que todas as pretensas religiões cristãs que hoje são professadas não passam de heresias; isto é, que elas não tendem diretamente à melhoria mais rápida possível do bem-estar dos pobres, que é o único objetivo do verdadeiro cristianismo.

(…)

Questões para reflexão

1. Reflita sobre a defesa de Saint-Simon pela tecnocracia, onde cientistas e engenheiros lideram a sociedade — de que maneiras isso pode ser paralelo aos apelos contemporâneos por uma governança orientada por especialistas, como na política climática ou na regulamentação da IA ​​pelas elites tecnológicas? Quais são os riscos de implementar uma sociedade liderada por uma elite tecnocrática? Como os grupos não industriais se comportarão?

2. Discuta as implicações do cientificismo de Saint-Simon, acreditando que a ciência pode resolver a maioria dos problemas humanos por meio de órgãos como o “Conselho de Newton”; como isso poderia informar os debates atuais sobre a dependência excessiva da expertise científica durante crises de saúde pública, como as respostas à pandemia de COVID-19?

3. De que maneiras a reformulação do cristianismo por Saint-Simon em um “Novo Cristianismo” focado na redistribuição social sem elementos metafísicos ecoa movimentos seculares modernos, como o ativismo pela justiça social ou a teologia progressista no combate à pobreza? Quais são os riscos das mudanças propostas por Saint-Simon para a religião cristã?

4. O blog destaca a influência de Saint-Simon na Teologia da Libertação; Como essa conexão pode orientar reflexões sobre o papel do ativismo religioso na política contemporânea, como nos movimentos progressistas latino-americanos ou nas iniciativas de evangelho social nos EUA?

5. Como o elitismo meritocrático de Saint-Simon, carente de uma compreensão profunda da natureza humana, pode alertar contra os riscos de excessos burocráticos em regimes contemporâneos de tendência totalitária ou em organizações internacionais como o Fórum Econômico Mundial?

6. Reflita sobre o contexto histórico das ideias de Saint-Simon, moldadas por revoluções e dificuldades pessoais — que lições isso pode oferecer para a compreensão de como as rupturas econômicas atuais, como recessões ou mudanças tecnológicas, alimentam ideologias políticas utópicas?

7. Você considera a sociedade ideal de Saint-Simon ideal para você?

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